Adotamos um ao outro, simples
assim: porque eu precisava dele e ele de mim. (Alessandra Grani)
Um
telefone ao alcance da mão, um número decorado na cabeça. E uma aflição no
coração. É aí que mora o perigo... (Martha Medeiros)
Quando ela me
encontrou, estava frio e úmido lá fora. Era uma daquelas tardes de chuvas
inesperadas em Goiânia. O cabelo dela, assim como meus pêlos, também estavam molhados
e pesados, e um cheirinho muito doce de chuva nos rodeava. De seus olhos
escorriam lágrimas escuras, que logo se diluíam na medida em que desciam por
seu rosto de pele cor de leite. Era estranha, alta, de garras vermelhas e por
mais incrível que pareça, tinha poucos pêlos em seu corpo, exceto por seus curtos
cabelos negros. Se eu mesmo não estivesse morrendo de frio, arrastaria ela para
dentro de minha caixa, ou se pudesse, daria a ela um pouco de meus pêlos.
Não foi necessário.
Ao contrario de mim,
ela vivia em uma casa bem grande.
Naquele dia eu fui
adotado.
Então,
Eu passei a ser o gato
dela.
Ela era gentil e doce
como mamãe. Cheirosa e macia como uma amiga de rua, e tinha um cheiro muito agradável,
logo eu passei a amá-la.
Ela vivia sozinha.
Todas as manhas ela
saia de casa, e voltava juntamente com o esconder do sol. Eu não me interessava
muito pelo o que ela fazia lá fora, mas amava o cheiro da rua que ela trazia, todas
às noites, impregnado em seu corpo.
Amava mais ainda quando
ela tirava suas roupas e entrava para o banho. Eu saia um pouco do sofá para
deitar na cama. Esperava diariamente ela sair do chuveiro e caminhar nua até o quarto,
era a alegria de meus dias. E seu corpo, mesmo que com poucos pêlos, me parecia
bonito.
Seus cabelos eram
perfeitamente presos.
Perfumada e levemente
maquiada.
Deitava-se na cama
comigo por uns instantes e me fazia um pouco de carinho, arrastando suas unhas por
todo meu corpo e dizendo algo que eu não entendia muito bem. Levantava-se e
saia de casa novamente, deixando-me sozinho na imensidão de nossa cama, com uma
tigela de leite e ração aos meus pés. Seu cheiro nunca desaparecia
completamente, sempre ficava algo dela comigo, mesmo quando ela me deixava só.
Mas eu também saia de casa, às vezes.
Mas eu também saia de casa, às vezes.
Mimi.
Mimi é minha namorada.
Meiga, pequena e bonita. Mas muito infantil.
-Casa-se comigo?
- Eu não posso mimi, eu prefiro as namoradas grandes, adultas. Um dia eu te explicarei tudo, quando você estiver pronta para uma conversa madura.
- Eu não posso mimi, eu prefiro as namoradas grandes, adultas. Um dia eu te explicarei tudo, quando você estiver pronta para uma conversa madura.
- Você voltar para
brincarmos? Você precisa voltar para brincarmos! Realmente precisa voltar.
Fiquei muito tempo sem
vê Mimi. É que prefiro uma mulher adulta, como a minha mulher.
Logo veio o frio.
A casa se tornou mais aconchegante e ela ainda
mais bonita: usava roupas longas, fofinhas e os cabelos agora não ficavam mais
presos. Usava meias coloridas nos pés, com os quais eu gostava de brincar
quando ela ficava no chão da sala lendo. Os dedos frios de sua mão incomodavam
um pouco, quando ela na pausa da leitura, me afagava a nuca. Não era nada demais,
mas se eu pudesse, lhe diria que usasse meias coloridas também nas mão. Às
vezes ela se encolhia toda, como uma bolinha, e me colocava no meio dela e das
cobertas. O cheiro ali era um dos meus cheiros favoritos em todo o mundo. Era o
mesmo cheiro que Mimi exalava quando queria namorar comigo, só que aqui é tudo
bem mais quentinho do que com Mimi. Nessas noites sempre comíamos coisas doces
e víamos algo maduro na televisão. As noites de frio em Goiânia são raras, por
isso os casais devem aproveitá-las bem, era o que eu e ela fazíamos.
O frio também trouxe tristeza
ao rosto dela.
Um dia, quando desligou
o telefone após uma longa conversa com alguém, ela chorou muito. Como se estivesse
com muita fome, ou sentindo muita dor. Depois daquele dia, não vi mais felicidade
em seu rosto.
Mas eu não reclamo,
depois daquele telefonema, depois de tanto vê-la chorar, com o tempo ela se tornou
mais minha. Passou a sair menos de casa. Suas roupas de sair à noite -que ela
sempre vestia quando saia do banho- foram substituídas por roupas que parecem
toalhas com mangas, roupas que eu chamo de ‘’roupas de ficar em casa comigo’’.
Não usa mais maquiagem e continua igualmente cheirosa.
Com
o tempo ela foi se tornando cada vez mais parecida comigo. Suas roupas foram se
tornando cada vez mais fofinhas (mesmo que fizesse calor lá fora), e ela cada
vez mais preguiçosa. Letárgica. Dormia muito, muito, quase sempre comigo no
meio de suas pernas, outras não, por eu preferir dormi sozinho às vezes. Ela pouco
a pouco estava se tornando uma gata grande. Uma gata caseira. Se um dia ela foi
selvagem – ela me pareceu selvagem quando me encontrou na chuva-, depois
daquele telefonema deixou de ser. Agora se parecia mais com uma gata grande,
caseira e domesticada. Quando
ela me trouxe para viver aqui, durante meus primeiro dias, eu tomava vários comprimidos
com gostos ruins. Não sei pra que serve ‘’remédio’’, mas ela dizia que me fariam
bem, então, eu os tomava. Ela também toma remédios agora. Toma sempre antes de
dormir. Não sei por que os toma. Devem fazer bem para ela, assim como ela
acreditava que faziam para mim. Talvez o telefonema fosse isso, o dono dela
mandando ela tomar remédio. E ela chora sempre, porque o gosto é muito ruim. Um
dia ela não saiu do quarto pela manha, como costumava fazer – ligava a TV e ali
passava o resto do dia-, neste dia ela não fez isso. Neste dia ela permaneceu
em nossa cama.
Sua
pele esfriou mais do que o normal e por mais que eu lambesse seu rosto, ela não
levantava para me dar comida. Seu cheiro mudou muito, não era mais tão agradável
quanto costumava ser. Sua pele ficou ainda mais branca, mas já não tão macia.
Arranhei seu rosto duas vezes – pois estava mesmo com muita fome - e mesmo
assim ela não acordou.
Um
tempo depois, o telefone de sua casa tocou novamente, pensei que agora ela
acordaria para atentá-lo e que talvez, assim como um telefonema a deixou
triste, esse talvez a deixasse feliz (eu não me importava em perder minha
namorada, desde que ela se levantasse e me desse o que comer), mas não. Nem
mesmo para atender ao telefone que tocava de hora em hora, ela levantou. Talvez
fosse o dono dela querendo saber se ela comeu, ou se tomava os remédios direitinhos...
Eu
sair de casa por uma janela.
Voltei
a viver nas ruas, voltei a ser namorado de Mimi (que agora era uma gata grande).
E
sempre conto essa historia para os outros gatos. Conto que uma vez tive uma
namorada humana e que ela morreu de telefonema.
Nenhum comentário:
Postar um comentário