domingo, 6 de setembro de 2015

Lipe ou O Pequeno deleite de se praticar pequenos atos cotidianos de crueldade

F. DORLÉAC “LA PAU DOUCE” F. TRUFFAUT - 1964




Felipe, deixei esse bilhete dentro de seu A Historia do Pranto, não somente por assim ter a certeza de que o encontrará (já que este tornou-se seu livro favorito), mas também por achar o título deste romance que tanto o cativou, extremamente apropriado para o conteúdo que lerá a seguir. É quase que um título para mim, A Historia do Pranto.
Felipe, por favor, não estranhe a formalidade, mas, não te tratarei, daqui por diante, pelo diminutivo, como vinha o fazendo deste que ‘’nos tornamos íntimos’’. Um casal atinge o máximo da intimidade quando os nomes são trocados pelos diminutivos, ou por nomes de legumes. Então, você que um dia foi meu ‘’xuxuzinho’’, hoje volta a ser Felipe. Mudarei o tratamento, simplesmente por não querer mais nenhum tipo de intimidade com você. Portanto Felipe, você que me conhece tão bem, penso eu que me conhece (afinal foram três aninhos e alguns meses juntos, certo? E isso eu não posso apagar. Isso não mudara nunca), sabe que sou extremamente aplicada em minhas decisões, que minha opinião nunca muda. Digamos assim: a partir de hoje, não seremos mais ‘’íntimos’’, talvez, se tudo der certo, sejamos até mesmo estranhos um para o outro. No fundo, no fundo essa é uma carta de ‘’estranhamento’’. É como um daqueles e-mails que enviamos aos ‘’exs’’ namorados, geralmente nos primeiros meses do termino, alias, cuja os quais demoramos mais tempo pensando se enviamos ou não, do que escrevendo. Uma daquelas mensagens em que falamos na terceira pessoa, dizendo que  alguém (e esse alguém deve ser sempre vago e impreciso) nós disse que ele está namorando novamente  e que ficamos felizes por isso ter acontecido. Um daqueles e-mails que terminamos com um ‘’sinto sua falta, você sabe. Mas foi melhor assim’’. Enfim, apenas uma demonstração para o outro, uma prova de que ainda se estar lá, que sua existência nunca o deixara de o perturbar. São confissões, mentiras. São uma última tentativa de resgatar o amor que se foi e que no fundo se sabe, que não voltará. São e-mails de estranhamento. São o primeiro passo para aquela sensação de desconforto quando nós encontrarmos anos depois, de modo involuntário, na fila de um banco, no shopping ou em qualquer outro lugar. Eu serei uma estranha para ti, e você um estranho para mim. Realmente espero que isso aconteça. Esse é o objetivo pelo qual escrevo. Estou dando o primeiro passo.
Se quiser, faça uma pequena pausa na leitura, e vá onde antes era o ‘’nosso quarto’’ (alias, recomendo que o faça). Lá, você não encontrará mais minhas roupas, nem meus livros, nem os dvd´s clássicos da Disney Pixar. Enfim, Felipe, lá você não encontrará mais nada que te remeta a mim. Tentei, na medida do possível, devolver o quarto aos moldes original, ao que era antes de minha estadia. Talvez algo de meu cheiro permaneça pelo ar, mas lhe asseguro que em breve nem isso de mim ficará
Se bem o conheço, e de fato sei que o conheço, certamente neste momento você entendeu o porquê desta carta, dentro deste livro. Sei também que, sim, você pausou a leitura e foi até o (agora seu) quarto. E nesse exato momento, você estar chorando. Acertei? Pois saiba que é justamente por isso que estou te deixando.
Eu nunca acreditei na metafísica do amor. Nós encontros apaixonados articulados pelo acaso, na mocinha que se encantada pelos dotes honráveis e dignos do rapaz, ou  menos ainda no rapazinho que enxergar a beleza para além do decote ou das coxas da moça. Eu não posso acreditar em nada além de dois corpos, como a verdadeira definição do que seja amor. Dois corpos se digladiando, um sobre o outro, em busca de prazer, de satisfação. Amor, Felipe, é isso. Não aquelas bobagens que você ler, e repete por ai (deveras, todas as suas cartas, bilhetes, poemas, estão na gaveta de baixo de sua mesinha. Não são meus. Nunca foram).
Vocês poetinhas, que julgam escrever em nome do amor, não passam de abutres em torno de um cadáver. Escrevem para vocês mesmos em nome de algo que não existe. Inventam lamurias. Choram as lágrimas pelo difundo que vocês mesmo assassinaram. Afinal, historias ou poemas de amor, com versos ou finais felizes, não vendem livros. (Prefiro não chorar eternamente pelos meus mortos. Por isso guarde os poemas para ti).
Felipe, entenda de uma vez: amor só é amor se for palpável. 
Como disse, amor é corpo. E é isso, que já há algum tempo, há entre mim e você. Um outro.  Um corpo de verdade, não de um poeta.
Não direi um nome, nem te darei um rosto. Do jeito que és, é perigoso até mesmo escrever um poema para fulano, sicrano ou beltrano. Escrever um poema para aquele que me come em seu lugar. Basta eu lhe dar um nome qualquer, e você o transforma em poesia. Você transforma tudo em poesia, não seria diferente com uma traição.
Choraria o que os homens já vêm chorando há tempos, e o seu texto já seria mais do que batido, séria um natimorto literário. Não precisa dar-se ao trabalho de gastar papel com isso, o ‘’mundo’’ (aspas aqui, porque sua única leitora era eu), não precisa do seu mais do mesmo choroso.
Suplico-lhe que ao menos dessa vez, dê a você mesmo um pouco mais de dignidade. Não escreva nada, e vá Felipe, vá pelo amor do bom Deus, arrumar um par de pernas para se emaranhar. Vá Felipe, se perde aonde de fato é possível se perder, nos segundos inexplicáveis de um orgasmo (nada de ‘’perder-se na imensidão inexplicável de uma bela poesia’’. Isso é balela Felipe, é mentira. É coisa de quem não transa).
Permita-me dizer algumas verdades.
Você nunca me cativou, nunca. No começo era divertido, engraçado. E eu quis vê até onde você iria, quis vê até onde aquele rapaz bonito pretendia chegar com aquele chororô todo (sim, Felipe, você é bonito). Portanto, você não precisa dessas mascaras que os outros homens usam quando desejam uma mulher. Poeta, músico, amante de cinema, literatura?! Bléh! Felipe, você não precisa disso, você é bonito. Bastava-me dizer ‘’oi’’, puxar um papinho qualquer e pronto, teria o que todo homem quer quando se aproxima de mim.
Bastava um ‘’oi’’ e eu seria sua. Mas, você prefere o jeito complicado de fazer tudo. Desde nossa primeira conversa (quando perguntava quais autores eu gostava, e antes mesmo de minha resposta já dizia os seus prediletos e em seguida vomitava em mim um monte de informação inútil sobre eles), até quando (sei lá eu, quanto tempo depois de nos conhecemos), teve a coragem de me pedir o numero de meu celular, e então, pelo próximo mês, enviar sempre, infalivelmente, um de seus poemas favoritos todas as manhas. Uma vez ou outra escrevia algo seu, ou ainda enviava um trecho de qualquer bobagem desconhecida que você fingia ser seu. Quanto mimimi para se ‘’cativar’’ uma mulher!
Eu nunca dei a mínima para esse seu ritual estranho de acasalamento, e se continuava a nutrir o seu falso bom gosto, era por pura curiosidade ou para vê quando de fato me dirias a verdade. Para vê quando de fato, dirias o que queria de mim. E a verdade é uma só, Felipe: Eu sou bonita, e você quis me comer. Fim.
E para atingi seu objetivo, enfeitou o caminho com aquilo que julgava ser para mim mimos. Como se eu fosse uma criança que se deixa levar por qualquer presentinho bobo.
P.S.: Flaubert é muito démodé.
Lembro-me da sua carinha de assustado quando transamos pela primeira vez (transa que só ocorreu, alias, graças a mim), lembro-me do quanto sentir vontade de rir. De gargalhar. Permito-me agora a pergunta (mesmo que nunca saiba a resposta), aqueles que cantam louvores as belas moças, não têm de fato nada a te ensinar sobre sexo, né? É sério isso? Anos e anos de demagogia poética para nada?
Você parecia que iria chorar. Foi o pior sexo da minha vida. E pra completar meu tédio, no outro dia ganhei um poeminha seu: 

Sobre a noite passada

Queria que fosse eterna
A noite que se fez bela
Graças a ti.

Fracamente, quantos anos você pensou que eu tinha? Treze? Felipe, na próxima vez que dormi com uma mulher, à acorde com um bom sexo oral, com um café da manha na cama, ou ainda melhor, não a acorde.  Simplesmente a deixe dormindo e saia. Faça qualquer coisa, mas não demonstre tamanha pateticidade. Não repita o que fez comigo com mais ninguém.
Eu queria muito te vê agora, vê sua carinha de choro. Vê a pontinha de seu nariz vermelha. As gotinhas de lágrimas caindo sobre o papel, me fariam sorrir. Depois viria seu ato dramático, deixando o livro e se jogando teatralmente no sofá. Permaneceria ali, parado. Chorando. Depois escreveria algo, e mais alguma coisa, e ainda mais um pouco. Escreveria e escreveria, por meses, até mesmo por anos. Se matizaria até encontrar outra mulher para mostrar seus poemas, suas lamurias. Outra mulher ‘’que escreve no mesmo estilo que o seu’’, outra mulher ‘’que o entende’’, que ‘’vê o mundo como você vê’’ e por isso você a ama. Fala sério! Quem ama uma mulher pelo modo como ela escreve ou vê o mundo?!
Você precisa aprender a amar uma mulher pelos motivos certos.
Mas enfim, cedo ou tarde, encontraria outra mulher que desejaria para além daquilo que pode vê. Outra a quem você dedicaria seus novos poemas, estes bem menos chorosos e com uma leve inclinação a felicidade. ‘’Felicidade’’ esta, escondida nos dias vindouros que viverás graças a ela. Dedicará a ela 365 poemas por ano. Será ela sua musa, sua inspiração, será ela sua alegria de viver. Mas tu não serás o contrario para ela. Com o tempo, toda aquela bobagem de se torna eterna, nas mãos de um poeta, começará a sufocá-la. E na mais pura contradição, perceberá que só se tornará de fato eterna, quando não mais existir para ti. E é isso que eu sou agora, eterna. Outras virão e assim como eu, também se tornarão passado. Se tornarão um bloco fixo em sua memória. Indestrutível. Inquebrável. Algo que não se arranca nem inteiro, nem pelos pedaços. Seremos, eu e todas as outras, como uma daquelas feridas que nunca fecham. Que nunca cicatrizam. Não por serem incuráveis, mas sim, por não deixamos que se fechem. Uma daquelas feridas das quais de tempos em tempos, descascamos com a pontas das unhas. Uma daquelas que a dorzinha provocada pelo roçar da unha, é mais prazeroso do que o nada sentir da pele reconstituída. E sendo poeta, verás uma grande beleza estética no fino filete de sangue que escorre entre seus pelos, nas gotículas avermelhadas que sempre ficam por de baixo das unhas, verás, por ser poeta, beleza onde só a dor e bizarrice. É mania dos poetas amarem mais a ferida do que a cura. Serei, não uma ferida qualquer, serei como um câncer localizado em um órgão vital, serei um pedaço de carne doente que não se pode retirar.
Serei para ti, eternamente, um poema.
Não serei cicatriz.
Serei, eternamente em você, carne viva. Dor.
Queria que você fosse diferente. Que mudasse. Que ao invés de chorar, transasse comigo. Transasse comigo como homem ao menos por uma vez em sua vida. Mas eu te conheço... E é por isso que estou te deixando.
Já que pra você, tudo termina em poesia, deixo aqui um agrado:

Morrerei de um câncer na coluna vertebral
Será numa noite horrível
Clara, quente, perfumada, sensual
Morrerei de um apodrecimento
De certas células poucos conhecidas
Morrerei de uma perna arrancada
Por um rato gigante surgindo de um buraco gigante
Morrerei de cem cortes
O céu terá desabado sobre mim
Estilhaçando-se como um vidro espesso
Morrerei de uma explosão de voz
Perfurando minhas orelhas
Morrerei de feridas silenciosas
Infligidas às duas da madrugada
Por assassinos indecisos e calvos
Morrerei sem perceber
Que morror, morrerei
Sepultado sob as ruínas secas
De mil metros de algodão tombado
Morrerei afogado em óleo de cárter
Espezinhado por imbecis diferentes
E, logo a seguir, por imbecis diferentes
Morrerei nu, ou vestido com tecido vermelho
Ou costurado num saco com lâminas de barbear
Morrerei, quem sabe, sem me importar
Com o esmalte nos dedos do pé
Morrerei quando descolaram
Minhas pálpebras sob um sol raivoso
Quando me disserem lentamente
Maldades ao ouvido
Morrerei de ver torturem crianças
E homens pasmos e pálidos
Morrerei roído vivo
Por vermes, morrerei com as
Mãos amarradas sob uma cascata
Morrerei queimado num incêndio triste
Morrerei um pouco,  muito,
Sem paixão, mas com interesse
E quando tudo tiver acabado
Morrerei.

O poema é de Vian. 




Da já não mais tua, Fernanda.



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