‘’Bom
é descobrir que eu sou só’’ (Sofia Freire)
Primeiro Ato: Repetição
Olhando para o teto
espelhado do quarto, com o corpo coberto até a altura do umbigo por um lençol
cor de sujeira, que saber-se lá Deus quando foi lavado pela última vez,
respirando tão mansamente que sua presença se fazia quase que imperceptível, como
um cadáver semi-nu e de olhos abertos. Com uma expressão de assustado a
tomar-lhe o semblante, como a expressão de uma criança que acabara de
descobrir o que é a morte, através da perda de seu animalzinho de estimação e sem saber como reagir, sem entender o que acabara de acontecer, simplesmente fica paralisada contemplando o pequeno corpo sem vida do animal. Encarando seu reflexo que o encarava de volta, lá do alto, como que o sentenciando, julgando-o pelo mais antigo dos crimes.
Corpo suado, melado.
Separado do meu por uma
poça branca e ainda molhada, talvez até mesmo ainda quente, bem localizada ao centro da cama.
Eu nua, mergulhada no
silêncio típico daqueles que cometem um crime premeditado, e que pego em ato,
não rebatem as acusações ou nem ao menos ousam clamar por perdão.
- Eu sair de casa, peguei
um ônibus e vim para o motel. E agora eu tô apaixonado... O que há de errado nisso?! Eu me sinto sujo... Eu não... Eu não deveria me sentir assim, afinal amor é
amor... Ninguém deveria se sentir culpado por amar... Eu.. Eu nunca fiz algo
assim... Você... Você já vez algo assim antes? – Ele indaga sem sequer virar o
rosto em minha direção.
- Já – Respondi, pondo-me em pé, procurando minha blusa.
-Aonde você vai? – Sem
tirar os olhos do teto.
- Fazer isso de
novo.
Ato Segundo: Dias Felizes
Éramos os mais
absolutamente normais. Em nós nada de especial, nada de incomum. E como
qualquer ser normal, inventávamos nossa própria epopeia, criávamos nossa magnífica
historia de amor que certamente era mais dramática e muito mais improvável do
que qualquer outra historia de amor já antes inventada. Eu era a depressiva, a
leitora de Clarice e de Raduan Nassar, a que ouvia Caetano e que chorava no
cinema. Você o homem forte, que entendia de política, leitor dos clássicos
ociosos, cheios de um vazio existencial que você se esforçava para ser o seu
charme, e que eu fingia ser o meu fetiche. Fumante, poeta, civilizado. Tudo
aquilo que eu não era e que você jurou no momento em que nos beijamos, que um
dia me ensinaria a ser. Mas o que você não sabia, não poderia saber, é que eu não
queria ser nada além do que ser como que um contrapeso na balança. Ser sua Capitu
nesta sua fantasia de ser um homem. Não precisávamos de Escobar, você tinha
Hesser, Salinger, os filmes de Brunel e toda aquela palhaçada francesa que te
ensinava a ser o intelectual que, em sua opinião, toda mulher amava.
Você foi meu primeiro
homem. Eu acreditava ser minha obrigação ser tudo aquilo que lhe faltava. Ser Dulcinéa incansável e impossível. Ser Madeleine culta e sacana. Ser Galateia fecunda e irresistível, moldada por suas próprias mãos para outros homens admirar. E
para além de tudo, obviamente, ser a mais bonita. Não me importava em ser tudo
isso, em fingir ser para você o que você quisesse que eu fosse.
Você ensinou-me a ser
sua também na cama, do jeito que queria e quando queria. Nunca havia sido de
ninguém, não sabia o que devia ou não fazer. Era aquilo. Ser sua me bastava. Eu
era feliz.
Terceiro Ato: Pequeno
Príncipe
Você não tinha o
direito, sabia?
Odiávamos a frase
‘’eternamente responsável por aquilo que cativas’’... Mas aquilo era a mais
pura verdade! Você não tinha o direito
de me deixar! Não porque você fosse meu, não era isso. Era o contrario... Você
não tinha o direito de me deixar porque eu era sua.
Você era meu autor. Meu
escultor. Era você quem me dirigia na vida...
Naquele dia de janeiro
em que você escreveu seu nome em minha coxa, era isso que significava, era isso
que o seu nome em meu corpo queria dizer, que eu era propriedade sua. Sua
responsabilidade.
Você é como uma criança
má, uma daquelas que não basta largar de lado o brinquedo velho, é preciso
quebrá-lo antes de abrir um novo.
Cresci, me fiz mulher. Aprendi
para que serve cada buraco que tenho em meu corpo, aprendi que posso mudar a cor do cabelo, posso fazer
caras e bocas. Sei do vestido, da saia e da nudez. Sei do que pensam sobre mim e
não têm a coragem de falar quando olham-me na rua. Sei da Santa e sei da
puta.
Você me ensinou.
Você regava-me diariamente com doses proustianas, carnavalescas, com o meu primeiro porre e, demonstrando em mim tudo que é parte em que se pode deixar de ser virgem. Cresci em sua cama,
afundei minhas raízes em teu lençol. Pensei ser a única rosa desse planeta... E
era! O que não sabia é que o mundo, este mundo aqui de 4 metros quadrados,
ficou pequeno para você. Você queria visitar outros lugares, sentir outros
gostos, cheiros. Eu fiquei. Com fome, frio, sede. Você foi e eu fiquei.
Dor.
Como o cão doente que inexplicavelmente
pré-sente sua própria morte, e deita-se aos pés da cama de seu dono, eu continuava a
sua espera. O tempo não era mais o mesmo, o tic-tac do relógio não marcava os
segundos como antes, não dizia sobre o futuro... Não dizia a hora de você chegar. Sem você nada me despertava vontade. Sem você tudo parou...
Eu não era como o doente
terminal que tendo os dias que lhe restam de vida marcados no calendário,
começa a perceber a beleza da vida em cada pequeno canto, ou a sentir a
presença de Deus em cada minúsculo detalhe. Não, eu não tinha a data de minha
morte circulada em vermelho no calendário, eu não morreria tão em breve, disso
eu tinha a mais plena certeza. Esse foi meu castigo. Covarde demais para matar-me e certa da impossibilidade
de sua volta, estar viva ser tornou o pior sofrimento possível. Isso você não
me ensinou: morrer.
É isso que você aprende
com a solidão, que ela machuca, mas não mata. Você aprende que o mais
importante, o mais crucial, não é amar, é está vivo. Aprende a comer sem sentir
o sabor do alimento, a sorrir sem estar verdadeiramente feliz, a acorda cedinho
e ir trabalhar, mesmo morrendo de vontade de continuar dormindo. Aprende que
nem sempre é preciso chorar no final do filme.
Como um enfermo que
passa dias sobre o leito de um hospital, sentir dor ao tentar caminhar
novamente. Chorei e gritei de dor. Cada passo era como se um músculo em minha
perna se rasgasse... Cair, Cair, Cair, Cair... Mas hoje, vestindo minhas calças
e saindo sem me despedir do homem que continua a olhar o teto como um cego que
vê pela primeira vez as estrelas, caminhando sozinha até saída desde pequeno
motel, hoje sei, estou curada.
Não há mais nada a aprender.
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