quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Três Atos de fel


‘’Bom é descobrir que eu sou só’’ (Sofia Freire)





Primeiro Ato: Repetição

Olhando para o teto espelhado do quarto, com o corpo coberto até a altura do umbigo por um lençol cor de sujeira, que saber-se lá Deus quando foi lavado pela última vez, respirando tão mansamente que sua presença se fazia quase que imperceptível, como um cadáver semi-nu e de olhos abertos. Com uma expressão de assustado a tomar-lhe o semblante, como a expressão de uma criança que acabara de descobrir o que é a morte, através da perda de seu animalzinho de estimação e sem saber como reagir, sem entender o que acabara de acontecer, simplesmente fica paralisada contemplando o pequeno corpo sem vida do animal. Encarando seu reflexo que o encarava de volta, lá do alto, como que o sentenciando, julgando-o pelo mais antigo dos crimes. 
Corpo suado, melado. 
Separado do meu por uma poça branca e ainda molhada, talvez até mesmo ainda quente, bem localizada ao centro da cama.
Eu nua, mergulhada no silêncio típico daqueles que cometem um crime premeditado, e que pego em ato, não rebatem as acusações ou nem ao menos ousam clamar por perdão.
- Eu sair de casa, peguei um ônibus e vim para o motel. E agora eu tô apaixonado... O que há de errado nisso?! Eu me sinto sujo... Eu não... Eu não deveria me sentir assim, afinal amor é amor... Ninguém deveria se sentir culpado por amar... Eu.. Eu nunca fiz algo assim... Você... Você já vez algo assim antes? – Ele indaga sem sequer virar o rosto em minha direção. 

- Já – Respondi, pondo-me em pé, procurando minha blusa.

-Aonde você vai? – Sem tirar os olhos do teto.

- Fazer isso de novo. 



Ato Segundo: Dias Felizes

Éramos os mais absolutamente normais. Em nós nada de especial, nada de incomum. E como qualquer ser normal, inventávamos nossa própria epopeiacriávamos nossa magnífica historia de amor que certamente era mais dramática e muito mais improvável do que qualquer outra historia de amor já antes inventada. Eu era a depressiva, a leitora de Clarice e de Raduan Nassar, a que ouvia Caetano e que chorava no cinema. Você o homem forte, que entendia de política, leitor dos clássicos ociosos, cheios de um vazio existencial que você se esforçava para ser o seu charme, e que eu fingia ser o meu fetiche. Fumante, poeta, civilizado. Tudo aquilo que eu não era e que você jurou no momento em que nos beijamos, que um dia me ensinaria a ser. Mas o que você não sabia, não poderia saber, é que eu não queria ser nada além do que ser como que um contrapeso na balança. Ser sua Capitu nesta sua fantasia de ser um homem. Não precisávamos de Escobar, você tinha Hesser, Salinger, os filmes de Brunel e toda aquela palhaçada francesa que te ensinava a ser o intelectual que, em sua opinião, toda mulher amava.
Você foi meu primeiro homem. Eu acreditava ser minha obrigação ser tudo aquilo que lhe faltava. Ser Dulcinéa incansável e impossível. Ser Madeleine culta e sacana. Ser Galateia fecunda e irresistível, moldada por suas próprias mãos para outros homens admirar. E para além de tudo, obviamente, ser a mais bonita. Não me importava em ser tudo isso, em fingir ser para você o que você quisesse que eu fosse.
Você ensinou-me a ser sua também na cama, do jeito que queria e quando queria. Nunca havia sido de ninguém, não sabia o que devia ou não fazer. Era aquilo. Ser sua me bastava. Eu era feliz. 



Terceiro Ato: Pequeno Príncipe  

Você não tinha o direito, sabia?
Odiávamos a frase ‘’eternamente responsável por aquilo que cativas’’... Mas aquilo era a mais pura verdade!  Você não tinha o direito de me deixar! Não porque você fosse meu, não era isso. Era o contrario... Você não tinha o direito de me deixar porque eu era sua.
Você era meu autor. Meu escultor. Era você quem me dirigia na vida...
Naquele dia de janeiro em que você escreveu seu nome em minha coxa, era isso que significava, era isso que o seu nome em meu corpo queria dizer, que eu era propriedade sua. Sua responsabilidade.
Você é como uma criança má, uma daquelas que não basta largar de lado o brinquedo velho, é preciso quebrá-lo antes de abrir um novo.
Cresci, me fiz mulher. Aprendi para que serve cada buraco que tenho em meu corpo, aprendi que posso mudar a cor do cabelo, posso fazer caras e bocas. Sei do vestido, da saia e da nudez. Sei do que pensam sobre mim e não têm a coragem de falar quando olham-me na rua. Sei da Santa e sei da puta.
Você me ensinou.
Você regava-me diariamente com doses proustianas, carnavalescas, com o meu primeiro porre e, demonstrando em mim tudo que é parte em que se pode deixar de ser virgem. Cresci em sua cama, afundei minhas raízes em teu lençol. Pensei ser a única rosa desse planeta... E era! O que não sabia é que o mundo, este mundo aqui de 4 metros quadrados, ficou pequeno para você. Você queria visitar outros lugares, sentir outros gostos, cheiros. Eu fiquei. Com fome, frio, sede. Você foi e eu fiquei.
Dor.
Como o cão doente que inexplicavelmente pré-sente sua própria morte, e deita-se aos pés da cama de seu dono, eu continuava a sua espera. O tempo não era mais o mesmo, o tic-tac do relógio não marcava os segundos como antes, não dizia sobre o futuro... Não dizia a hora de você chegar. Sem você nada me despertava vontade. Sem você tudo parou...
Eu não era como o doente terminal que tendo os dias que lhe restam de vida marcados no calendário, começa a perceber a beleza da vida em cada pequeno canto, ou a sentir a presença de Deus em cada minúsculo detalhe. Não, eu não tinha a data de minha morte circulada em vermelho no calendário, eu não morreria tão em breve, disso eu tinha a mais plena certeza. Esse foi meu castigo. Covarde demais para matar-me e certa da impossibilidade de sua volta, estar viva ser tornou o pior sofrimento possível. Isso você não me ensinou: morrer.
É isso que você aprende com a solidão, que ela machuca, mas não mata. Você aprende que o mais importante, o mais crucial, não é amar, é está vivo. Aprende a comer sem sentir o sabor do alimento, a sorrir sem estar verdadeiramente feliz, a acorda cedinho e ir trabalhar, mesmo morrendo de vontade de continuar dormindo. Aprende que nem sempre é preciso chorar no final do filme.
Como um enfermo que passa dias sobre o leito de um hospital, sentir dor ao tentar caminhar novamente. Chorei e gritei de dor. Cada passo era como se um músculo em minha perna se rasgasse... Cair, Cair, Cair, Cair... Mas hoje, vestindo minhas calças e saindo sem me despedir do homem que continua a olhar o teto como um cego que vê pela primeira vez as estrelas, caminhando sozinha até saída desde pequeno motel, hoje sei, estou curada.
Não há mais nada a aprender. 





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