terça-feira, 14 de janeiro de 2014

O dia em que meu pai saiu pra comprar cigarros



No dia em que meu pai saiu para comprar cigarros, infelizmente ele voltou.
Mas minha mãe já estava tão cega de saudade, que não o viu entrar.
Ela não sentia mais seu fedor de suor e nicotina, nem mesmo quando papai se sentava ao lado dela, no ''habitual'' canto esquerdo do sofá.
O cheiro de pinga barata invadia a casa todos os dias pela manha. Chegava até mesmo antes que o cheiro de café aguado que meu pai vazia compulsivamente. Mamãe não sentia o cheiro de nada, nem da pinga, nem do café ou muito menos de papai.
Sempre no fim da tarde, minha mãe chorava sozinha em frente a televisão. Passeando as mãos sobre seu rosto. Choramingando saudades de papai, que estava ali, sentado ao seu lado.
Mamãe não conseguia vê as cicatrizes que papai lhe causara. Não sentia mais falta dos dentes quebrados, ou de suas amizades destruídas por ele.
Tudo que mamãe sentia era saudade.
Não havia mais salvação, a cegueira de mamãe era total.
Meu pai foi se sentido cada vez mais ignorado dentro daquela casa.
Foi ficando sem voz, sem cor.
Um dia sumiu de vez.
Minha mãe também ficava a cada dia mais pálida, mais calada.
Sumiu aos poucos.

Primeiro: Largou a casa.
 Esta fedia a mofo em todos os cômodos, mas principalmente no banheiro.
As pias entupiram, os relógios velhos nas paredes pararam, as paredes desbotaram.
Os álbuns de família se perderam em meio ao lixo.
Não se comia mais em casa.
O fogão era morada de ratos.

Segundo: Largou o corpo.
Não banhava. Não penteava os cabelos. Não se depilava.

Terceiro: Não se levantou nunca mais.
No dia em que eu sair de casa, já não havia mais ''minha casa'' ali.
Tudo era apenas um deposito.
Um gigantesco deposito de lixo, de corpos, de bêbados e de cegos.
E acima de tudo, um gigantesco deposito de pai e de mãe.

desenho de Lourenço Mutarelli

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