Alguma
vez você já esteve do lado de fora?Quer dizer, não temporariamente. Quer dizer,
ter nascido do lado de fora. Nunca ter estado do lado de dentro, nunca ter sido
acariciado, nem sequer uma vez. Já?Então você sabe da escuridão da qual não é
apropriado falar (Miranda July)
Bilhete pregado na porta da geladeira:
Pequena, espero que quando estiver lendo este bilhete, eu já
não esteja em casa.
Irei direto ao ponto: Minkumin morreu de tristeza.
Não foi por desleixo meu. Muito menos um ato de crueldade.
Um dia, cerca de três ou quatro após sua partida eu o encontrei todo duro, todo
esticadinho com as patinhas espichadas e frias, enrolado naquele seu moletom rosa (aquele
mesmo que eu manchei de azul no dia em que tentei lavar nossas roupas pela
primeira vez.’’Você deve separar as peças pelas cores neguinho’’. Eu nunca pedi
desculpas por aquilo, então...Me desculpe, minha pequena, por ter estragado seu moletom
favorito. Por estraga-lo duas vezes. Primeiro por manchá-lo de azul, segundo por
lhe confessar que Minkumin morreu todo durinho dentro dele. Bom... eu o lavei
novamente, digo, o moletom... Desta vez o lavei certinho. Fiquei em duvida por um
certo momento se o colocava junto as peças azuis ou as peças rosas. Acabei o
lavando em separado, à mão mesmo. Mas a conhecendo como creio que conheço, sei que
o jogara fora. Pensando,‘’meu moletom favorito, rosa com manchas azuis, foi o
caixão de Minkumin’’).
Lembrei-me de quando o encontramos. Eu o achava feio demais.
Você dizia que ele era o ‘’gato mais lindo de toda a América do Sul’’. Que ele
era sujinho, doente e com bastante remela nos olhos. Que ‘’certamente era
latino-americano’’. Eu o achava simplesmente feio. Chegamos à conclusão que ele
deveria ser baiano. Lembra-se disso? Elaboramos uma historia na qual ele certamente tinha caído do caminhão de mudanças de alguma família que veio de Salvador ou de Feira
de Santana para montar uma grande empresa de artigos religiosos em Goiânia.
Rimos disso. E concluímos que essa historia era ‘’muito filme americano. Muito
Sessão da Tarde. Só faltava agora o bichano começar a falar’’. ’’Não, a
historia não é assim’’ você disse toda séria, ’’Certamente ele foi abandonado
pela mãe. Era o gato mais novo de uma ninhada de noves gatinhos. Todos nasceram
mistos, manchados, mesclados de preto e branco. Mas esse aqui nasceu todo
neguinho. Nasceu com alguma doença. Por isso sua mãe-gata-sem-coração o abandonou. Agora sim! Temos a
biografia de um gatinho latino-americano de verdade. De um gatinho brasileiro, baiano
talvez’’, concluiu.
’’É... Ele é mesmo meio feio, amor... ’’Você disse isso a
noite, no sofá, sentada como sempre se senta, em posição de quem pratica
yoga. Inclinada para baixo, fixando com um olhar meio morno, meio sonolento a caixa de papelão entre aberta em nosso ‘’tapete-persa’’, comprado
na Av. Bernardo Saião, que na
sua opinião ‘’ficou lindo’’ em nossa sala/cozinha/quarto (‘’Uma casa pratica’’
você disse a primeira vez que veio aqui. ’’Todos os cômodos em um só’’). Caixa de
papelão que você pegou na mercearia da esquina, e escreveu com canetinha verde na
frente: Home-Sweet-Home (''Em inglês, porque goiano gosta de fingir saber falar inglês'', disse). O nosso gatinho latino americano dormia, enrolado naquela
minha camisa de manga longa que segundo você,’’era xadrez demais para usar
durante o dia. E xadrez de menos para usar a noite. Não tem serventia.’’ O
gatinho latino-americano/baiano, tinha agora um lar.
‘’Ele vai se chamar Minkunim’’.
Você escolheu o nome quando Minkunim saiu da caixa pela primeira vez (um dia após sua chegada). Mikunim saiu da caixa para defecar em nosso tapete e em seguida voltou a dormi em seu lar-doce-lar de papelão
Você escolheu o nome quando Minkunim saiu da caixa pela primeira vez (um dia após sua chegada). Mikunim saiu da caixa para defecar em nosso tapete e em seguida voltou a dormi em seu lar-doce-lar de papelão
‘’Ele é como você
amor. Puxou ao pai. Ele é feio, preto e pobre. Mikunim quer dizer isso, Mikunim
é preto (Mi), feio (Kun), e pobre (Nim) em japonês. ’’Eu gargalhei e fiquei
emocionado. Gargalhei por que sabia que você não compreendia uma silaba sequer em
japonês. É que Mikunim poderia significar qualquer coisa em terras
nipônicas, exceto feio, preto e pobre. Me emocionei, porque de repente me dei conta
que havia ganho uma família. Uma família tipicamente Goiânia. Um pai vindo da
Bahia, uma mãe Mineira e um filho nascido por aqui mesmo.
Tornei-me pai. Você mãe. Nós, uma família.
Mas agora Mikunim está morto. Um erro grotesco da natureza.
Uma falha. ’’Os filhos nunca devem morrer antes que os pais’’, você me repetia
na sala do veterinário, toda aflita quando Minkunim ficava doente. Eu a tranquilizava dizendo que ele tinha nove vidas, e que certamente eu e você
morreríamos primeiro que ele, pois somos fumantes. E que além do mais Minkunim
se cuida muito bem, só come ração de qualidade com ‘’a quantidade exata de vitaminas,
proteínas e minerais que seu gato necessita diariamente para uma vida
saudável. Minkunim certamente viverá por muito tempo, pequena’’. Você sempre sorria
quando eu dizia essas coisas... E agora eu lhe confesso que por dentro, eu também sempre
sorria. Sorria por estar cumprindo o papel de um pai. Pai que leva
seu filho ao médico e que tranquiliza a esposa. Pai que serve diariamente à
mesa boa comida. Comida de qualidade. Comida com ‘’a quantidade equilibrada de
nutrientes para o dia a dia de sua família.’’
Minkunim cresceu. Tornou-se forte. Aprendeu a se virar por
conta própria. A roubar comida na prateleira de cima do armário e a esconder
por de trás de nossos livros. Minkunim encontrou seu aconchego em nossa estante.
E você sempre que encontrava as sobras de pão que Minkunim escondia por de trás
das obras completas de Lemony Sticket, dizia-me,’’Vê? É seu filho legitimo, nego! Preto
e inteligente como o pai’’. Assim eu aprendi a amar Minkunim. Aprendi a adorar a
sua presença em meio aos meus livros, a degustar sua companhia quando este se
deitava na cama enquanto eu estava ali lendo. Até mesmo o perdoei por ele ‘’ter
comido sem querer amor, aquele seu livro do Sartre. Aquele que você comprou em
Portugal’’. Aquele meu livro do Sartre que comprei em Portugal pequena, era a
primeira edição de A Náusea. Uma raridade de paginas amareladas. Apesar deste
misero detalhe, não sentir raiva de Minkunim. Afinal quantos pais no mundo podem
dizer por aí que seu filho comeu Sartre?
Lembrei-me de tudo isso pequena. Lembrei-me de cada detalhe
enquanto colocava fogo no corpo de nosso gato. Eu sei que você ‘’morre de medo
da morte’’, simplesmente por não suportar a ideia de alguém lhe jogando terra na cara,
enquanto você está toda solitária e morta dentro
de um caixão. Então, em um ato de respeito a você. Eu cremei nosso filho.
Minkunim morreu em paz. Envolto no moletom
predileto da mãe. ’’Vocês ficarão bem?’’, Você me perguntou saindo para aquela
sua viagem a Minas. Não pequena, nós não ficamos bem. Minkunim morreu de saudade. E
eu covarde que sou, não pude lhe da a noticia por telefone. Então escrevo. E
faço como combinamos quando você decidiu vim morar aqui em casa. ’’Quando um de
nós fizer algo terrível. Não falaremos pessoalmente. Nunca nós exaltaremos,
nunca levantaremos a voz um ao outro. Então, para evitar os efeitos colaterais que
a raiva de receber tais noticias podem trazer, escreveremos os fatos, e os
pregaremos na porta da geladeira. Simplesmente porque raiva e comida se
combinam. Raiva combina com sorvete. Então prometeremos isso um ao outro: Quando
fizemos algo terrível, iremos escrever os fatos em um bilhete e colar na porta da geladeira.
Deixaremos assim e saímos de casa. Sempre deixando um pote de sorvete no
freezer. Depois que o destinatário ler, depois que esfriar a cabeça, se for
possível a este um ato de perdão, então deverá baixa filmes franceses e ligar
ao remetente, lhe convidando para vê um bom filme (de preferência algum de Xavier Dolan). Caso o destinatário não ligue, o remetente não deve
incomodá-lo. Será o fim. Sem magoas. Sem choro. Sem lembranças ruins.
Um comentário:
...eu me sinto tão burra lendo esse blog que até desisto de entender.
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