domingo, 24 de maio de 2015

O Sobrenome dela não diz sobre o meu lar ou O Drama dela colore meu mundo

 legeVictor Ivanovskinda




‘’Pessoas são degustações’’ (Baleia)

 Me leva amor! Eu não sei viver sem o seu  carinho, eu não sei existir sem o seu  amor (Trópicos)  




Só há um espetáculo mais penoso que o do amor contrariado: o do desejo não correspondido. Porque no amor nadam tanto aquele que ama quanto aquele que não ama, mas aquele que não deseja está fora do desejo, e não há nada que possa restituí-lo ao mundo do qual se excluiu. O não daquele que não deseja é absoluto, não tem retorno e transforma aquele que disse em alguém radicalmente alheio, não diferente, mas heterogêneo: não alguém que está em outro ‘’estado’’, do qual finalmente, passado certo tempo, mudadas certas circunstâncias, poderia ‘’sair’’ ou ‘’passar’’ para outro, mas alguém que pertence a outro reino. Um cão no cio, digamos, patrulha uma praça. Detecta um cão como ele, da mesma raça, inclusive, e antes de saber se é macho ou fêmea, se o diminuto sexo que tem entre as pernas encontrará um buraco onde se desafogar, desancasse sobre ele, surpreende-o por trás, trepa em suas ancas e arremete com seu cego, frenético vaivém. Mas eis que o outro não quer. Não quer e ponto. Seu não-querer é tudo: é tão puro, tão surpreendente quanto o querer do outro. Fica quieto, a língua pendurada entre os dentes, olhando algum ponto ao longe, até que outra coisa chama sua atenção e move um pouco a cabeça e continua olhando, enquanto o outro, o que está no cio, multiplica seus assédios e se esfalfa inutilmente. Quem não sofreu um dia com essas estampa patética? Por que há dois cães? Ou melhor, um, do cio, que deseja, e depois sua presa impossível, que não deseja e que por não desejar já não é um cão, mas outra coisa: algo inerte, um pedaço de pedra, uma planta, um tronco em forma de cão? Assim, entre aquele que deseja e aquele que não, o que faz papel de ridículo é sempre o primeiro, pois, atirando-se sobre a criatura que não retribui sua atenção não comete um erro de avaliação, nem de cálculo, nem de oportunidade: engana-se de espécie.

Fechei o livro. Olhei para Vanessa, adormecida ao meu lado, semi-coberta por uma manta azul que ela mesma me presenteara em meu aniversario de 23 anos. Vanessa dormia como sempre o fazia, alias como somente conseguia o fazer: Usando suas tradicionais meias sociais azuis e seu tapa-olho - com um olho grande, extremamente arredondando, desenhado bem ao meio, de modo que quando ela o usava, o olho ficava precisamente acima de seu nariz. Um terceiro olho fictício, sempre aberto. ‘’Sou um ciclope usando meias sociais para dormi’’, dizia Vanessa sempre que eu e ela dividíamos a mesma cama. Cabeça recostada sobre meu peito, seus fios de cabelos tão finos quanto um corte na pele provocado por uma folha de papel, curtos. Sua respiração lenta, sua mão esquerda por entre minhas coxas, a pele de seu rosto levemente ‘’colando’’ na de meu peito devido ao exagero de produtos faciais que Vanessa usava antes de ir para cama. A cada página virada, um pequeno lampejo de Vanessa. Seus dedos levemente curvados, não chegavam a tocar o meu sexo, apenas roçavam-me os pelos recém aparados, sem nenhuma pressão, exceto por aquela que o peso natural de sua mão adormecida lhe conferia.

 ‘’Enganar-se de espécie’’. Sussurrei.

Intercalava a repetição mental da frase, com tantas outras, soltas, aleatórias, que brotavam em meu pensamento como uma torrente constante e continua, sem fim. Ressonâncias, sementes germinadas do impacto da frase original. ‘’ Enganar-se de espécie’’. Sentir-se fraco, necessitado de outrem, submisso ao sexo alheio. ‘’ Enganar-se de espécie’’.  Forçar o órgão genital a entrar em um buraco que não lhe cabe. ‘’ Enganar-se de espécie’’. Enfiar qualquer coisa dentro de si - desde que ‘’essa qualquer coisa’’ seja enfiada por outro. Outra mão, outro corpo, outra voz. Implorar pela piedade de outro, e ainda assim encarar o ato alheio como sendo da própria vontade de quem o pratica. Como se você não tivesse nenhum envolvimento ou culpa. Como se você não tivesse pedido ou implorado por ‘’amor’’. Como se um ato genuíno. Talvez em suma o amor seja mesmo isso, uma impostura disfarçada de altruísmo.
Retirei com todo o cuidado, da forma mais leve e delicada que o pude fazer, a mão adormecida de Vanessa de dentro de minha calcinha . O elástico da peça lhe pressionara o punho, deixando uma marquinha fina e avermelhada na pele como se essa estivesse ficado tempo demais em contanto com o tecido da roupa  e assim absorvido um pouco da tinta rubra para si.
Levantei. 
Vanessa continuava impecável em seu sono. Apaguei a luz do abajur que me auxiliara na leitura. Abrir meia janela - que ficava do outro lado do quarto. Reparei no sono de minha amante novamente. Permanecia Impassível. Tranquilo. Intacto. A cabeça agora repousada sobre o travesseiro. De bruços. Usando apenas seu arsenal sonoro: Meias sociais, creme facial de forma exagerada e tapa-olho de ‘’ciclope’’.
Em pé.
Na janela. 
Vista para a rua.
Acendo cigarro. 
Trago enquanto continuo a reparar o sono de minha amante.
Ruiva.
Pequena.
Minha semelhante.
Ciclope.
Quando li a Odisseia pela primeira vez, minha passagem predileta certamente foi à luta de Ulisses contra o ciclope. Uma luta sem armas, uma luta sem sangue derramado. Uma vitória da perspicácia e inteligência humana contra os músculos, a clava e a ingenuidade da besta.
O ciclope é um ser tolo, burro e desengonçado. Sempre foi para mim a caracterização perfeita do homem. Como se a combinação músculos e ingenuidade fosse algo exclusivamente masculino. Nunca li sobre um ciclope fêmea. Nunca.  Talvez por isso, sempre pensei em Ulisses como uma mulher.
Hoje, adulta, tenho aqui o que não pensei existir. Um ciclope-fêmea. Dormindo em minha cama, usando creme clareador para a pele do rosto e meias-socias azuis.
Solto a fumaça que prendo em meus pulmões - de modo mais lento do que costumo fazer.
Olho para a rua. 
Vazia.
Um pensamento me atravessa: Transo com uma besta.
O que sou?
Eu e Vanessa: Duas bestas dividindo a mesma cama.
Sou besta. 
Não Ulisses.
O meu Ulisses atende por outro nome.
Paulo.
‘’Amigo’’.
Paulo foi em minha vida à junção em um  dois erros em um só.‘’Nunca transe com um amigo e nunca se relacione com cancerianos’’, me dizia ele mesmo, com um sorrisinho que ainda hoje não sei dizer ser de ironia ou deboche.
Paulo, meu amigo canceriano foi até hoje o único que me deu orgasmos. Alias, me ensinou a tê-los. Foi quem me ensinou que amor e seriedade não combinam. Que por si só a frase ‘’relacionamento sério’’ é um absurdo. ‘’Tudo que é sério não pode ser bom, pequena’’ repetia. Paulo provocou em mim o mesmo que Ulisses a besta. 
Atordoamento.
‘’Tudo aquilo que é sério, não pode ser bom’’. Conselho de amigo. Em minha casa, em meu quarto, com a cadeira giratória que geralmente fica em frente a minha escrivaninha, posicionada do outro lado do quarto, de frente para o espelho. Sentada com uma toalha sobre meu colo, com os cabelos penteados metricamente para trás. Paulo em pé.  Empulhando uma tesoura e um pente-fino amarelo. Seu reflexo no espelho, dizendo: ‘’Tudo que é sério não pode ser bom... ’’. Um conselho de amigo, alertando contra os riscos da seriedade, dito exatamente no dia em que transamos por ‘’brincadeira’’.
Reflexo no espelho:
O pente que cai de suas mãos
Paulo se agachado para buscá-lo.
Sinto
o calor e a firmeza de sua mão que segura em minha coxa, buscando apoio para se levantar.
Sou eu quem o beija, para logo em seguida, quase que instantaneamente, lhe pedir desculpas (beijei um amigo).
E ele, ainda curvado ao meu lado, com seu meio sorriso típico, diz em tom – que não sei diferenciar ser calmo ou irônico - ‘’tudo bem’’. Afinal ele era mesmo irresistível. ‘’Que alias todos os cancerianos o eram. Que aquilo era uma pura sacanagem dos astros para com as pessoas de outros signos’’.
Paulo, com duas frases, arrancou de mim toda a falsa-dramaticidade que a cena parecia representar.
Ergue-se. Volta as minhas costas.
O pente e a tesoura deslizam mais uma vez de suas mãos. Seu reflexo olha delicadamente para mim. Suas mãos não se dirigem mais aos meus cabelos, desta vez, entram lentamente por entre minha blusa. Fecho os olhos – tento encarar o espelho como uma criança que tenta encarar a TV tarde da noite, e acaba adormecendo. A cada movimento dos dedos de Paulo em meu seio, meus olhos se cerram um pouco mais. Sinto toda a leveza com que Paulo retira os fios soltos de cabelo que me cobriam a nuca, os leva para detrás de minhas orelhas, abrindo caminho em meu pescoço para sua boca. O calor de sua língua sobre minha pele me provoca um leve arrepio. Sua mão por dentro de minha blusa parecia nunca vacilar, nunca errar - nem mesmo eu me tocava daquela maneira, tão precisamente, tão cirurgicamente.
Desliza sua boca sobre minha pele - abro os olhos, não é mais o reflexo de um ‘’amigo’’ que tenho à minha frente. Tenho agora o corpo de um homem - riscando minha pele com sua saliva, conduzindo meu corpo com seus braços, brincando de entranhar seus dedos por entre meus cabelos – descendo sua língua pelo meu corpo, e tão lentamente quanto desce, se demora sobre meu sexo que agora já esta aberto e exposto.
Me contorço. Solto um gemido longo, de prazer, mas também de espanto - sinto como tento pequenos espasmos, pequenos choques elétricos pelo corpo – sensação que começa em minha vagina, disparada por qualquer mínimo roçar da boca de Paulo – e logo se espalha pelo corpo inteiro – fazendo com que minhas mãos, braços e pernas não me obedeçam mais – como um corpo que é eletrocutado e se move involuntariamente devido a corrente elétrica que passeia por ele, estava eu a cada beijo ou lambida de Paulo em minha buceta.
Sobe deslizando sua boca pela minha virilha, pelos cantos de minha coxa, de minha barriga, passa reto entre os meus seios - beija minha boca. Um beijo mais vagaroso e firme do que o primeiro, como se dissesse através deste ‘’Sinta, cá estar seu gosto’’. Naquele instante Paulo não era mais homem, nem mesmo reflexo. Puro espelho. Eu beijava a mim mesma, como uma adolescente que se exibe no ensaio do primeiro beijo -  eu não ensaiava, mas de fato beijava a mim mesma. Não sentia o gosto do material frio do espelho, sentia o meu.
Pela primeira vez alguém mostrava, não dizia, mostrava - dava-me a experimentar - meu próprio sabor.
Abro e fecho os olhos de modo involuntário, como que por puro reflexo, provocado pela forma com a qual Paulo entra e sai de mim. Meu corpo inteiro treme com cada centímetro do vai e vem de seu membro em minha vagina. Paulo parava entre intervalos - quase que cronometrados - descia sua boca em meu sexo e voltava em um beijo, como em um rito - como uma abelha que sai da colméia para buscar pólen e volta com o corpo carregado. Paulo me chupava e voltava com a boca carregada de meu liquido – Paulo comportava em seus lábios não a matéria prima, mas o próprio mel. Alimentava-me com meu próprio necta, fazia daquilo que meu corpo produzia, meu alimento. Não se preocupava ele mesmo em saciar sua própria fome. Preocupava-se acima de tudo comigo – como se eu não comece nada há anos -, como se dissesse em seu gesto: primeiro você, depois eu - vamos coma.
Meu corpo jamais se esquecerá da delicadeza de meu amigo canceriano.
Paulo, meu amigo intimo o suficiente para cortar meu cabelo. Intimo o suficiente para me chupar por brincadeira. Para me penetrar sem a menor seriedade. Para ser na cama, mais generoso comigo do que com ele mesmo. Foi à primeira fêmea com quem transei na vida. Foi meu Ulisses, mulher em corpo de homem.
Hoje
Troquei as delicadezas e a generosidade que só se tem ao se deitar com uma mulher, pelas tolices, a falta de jeito, a desengoncidade de uma besta.
Vanessa.
Nunca tive Paulo nas mãos.
Nunca.
E aquilo sempre me pareceu uma necessidade.
Incomodava.
Doía mesmo.
Ainda dói
a idéia, a imagem de Paulo tocando outra mulher ainda doi. Não concebo a possibilidade de Paulo ensinando o que me ensinou a outra, a fazendo sorrir, a fazendo gozar como me fazia. Convencendo outra mulher de que o mundo pode sim ser bom, alias, mostrando que o mundo é bom – e é bom graças a ele.
Não havia como me convencer que Paulo era o mesmo amigo de antes, que era ainda aquilo que sempre fora. Impossível. Cruel. Era como cortar as pernas de uma criança que acabou de dar o primeiro passo e regojiza em jubilo.
Paulo foi segredo. Foi intimo. Foi somente meu.
Para o mundo: Meu amigo.
No meu quarto: O único amante que meu corpo desejava.
Nosso acordo: lá fora amigos. Aqui dentro: homem e mulher. Algo estava subscrito, como em um contrato de formalidades. Paulo conduzia sua vida como um sábio chinês em um conto para crianças, cheio de frases e ensinamentos ao mundo. Paulo acreditava em seus jargões, em suas fabulas. Alias, desde quando comecei a transar com Paulo, tudo que ele me soltava eram frases curtas e soltas. Ensinamentos. E ‘’não transar com um amigo’’ era uma das ‘’dicas para a vida’’ prediletas de Paulo. ‘’ A amizade pode e deve advim do amor, mas o amor nunca deve advim da amizade. Não funciona.  O nome disso é zelo, carinho, cuidado. Amor é tesão.  O amor é agressivo, a amizade terna. Gentileza ser torna bravura, raiva, tesão. O contrario não existe’’.
Quebrei a auto-regra de Paulo, afinal, meu amante era um amigo canceriano – ‘’Não se relacione com cancerianos, simplesmente porque são sentimentais demais’’.
Cindir as coisas foi à solução que encontrei para não perde meu amante. Nada mudaria, continuaríamos ‘’amigos’’. Mas aqui – em meu quarto – as coisas seriam diferentes. Paulo seria o amante, e acima de tudo meu professor. Ensinava-me - mostrava em meu corpo – sua louça - coisas que eu desconhecia.
Brincava de me fazer arte.
Retratava-me. Extraia de mim a tinta que espalhava sobre o mesmo corpo/tela em que eu era em suas mãos.  Era vicio. Toda noite. Meu vicio era me expor a ele, ser dele.
Vanessa: Calmaria.
Não me bagunça. Não me provoca. Encaixa-se ela em mim, como uma pecinha de lego. Se não der certo, se o buraco for pequeno ou grande demais, Vanessa desiste. Beija-me com a ponta dos lábios e dizendo que me ama, desiste de brincar. Veste suas meias sócias e adormece sobre meu peito ou me abraçando de forma quase que maternal. Deixando-me a margem de qualquer livro que tenha por perto. Não me força. Não tenta me romper ou me alargar até o limite.  Não me arromba nem um pouquinho...
Lembro-me de um dos conselhos de Paulo. ‘’aconteça o que acontecer, não seja educada demais no amor. O amor é um ato de deseducação. É injusto e severo. No amor não se respeita o semelhante. No amor se cobiça a mulher e o homem do próximo. Não se beija a boca ou se toca o corpo de um amante com respeito e carinho, no amor, se devora cada pedacinho com a máxima voracidade. Como um coiote faminto em um deserto ao se deparar com a presa acuada. Ele a estraçalha, a devora em questão de minutos. Lambuza-se com o sangue de sua vitima. Vigia os restos do animal que acabou de matar para que nenhum outro se aproveite de seus esforços. O amor é isso, um bando de coiotes em um deserto imenso. Se por sorte você encontrar sua presa, a estraçalhe de imediato. Coma cada musculuzinho e fibrinha de carne com voracidade. Durma ao lado da ossada. Vigie o amor mesmo após morto. No deserto, tudo que não é você, é comida.
Vanessa é como um gatinho domesticado. Sem graça. Daqueles que todos compartilham e adoram nas redes sócias, mas que de fato ninguém adota. Gatinhos que só fazem sentido em sua vida, quando uma visita vem e diz, ‘’que lindo’’ – e que indo esta embora, o animal volta a ser o mesmo bichano chato e preguiço de sempre. Vanessa é a pessoa certa para se caminhar de mãos dadas pela rua, mas que na cama, não me faz a menor diferença. É na cama como uma gatinha gorda e sonolenta em sua caixinha de areia.
Vanessa é a folha de alface na mesa de um ex-vegetariano. É insosso.
Nunca entendi porque ela...

O que sei é que joguei o jogo que me deram pra jogar.
Com as regras que me ensinaram.

Nunca me exibiu ao mundo. Pintor de uma tela só. Não sei se por vergonha ou se por excesso de amor para com aquilo que pintou, mas Paulo nunca me pós na cena, nunca me expôs a ninguém. Nunca andou comigo com suas mãos coladas as minhas. Nunca ninguém soube que foi ele quem me talhou. Nunca ninguém soube de nós. Nem nunca ninguém saberá. Sou a sua obra ambulante, sua peça sem assinatura, sou Galatéia sem Pigmalião.

Obra de arte trancada em quarto escuro.

Só dele. Meu quarto, sua sala de exposição.

Não havia mais tempo entre nós para aquilo que não fosse corpo. Não havia mais diálogos ou qualquer outro indicio do que fora antes uma amizade. Meu amigo ficava do lado de fora, na faculdade, na rua, no mercado, em qualquer lugar menos ali, em meu quarto. Tudo aquilo era maravilhosamente bizarro e excitante. A falsidade nossa de cada dia, a difamação que cometíamos quando juntos nos sentávamos à mesa para almoçar com amigos da faculdade, e Paulo se virando cordialmente para mim (a cordialidade e a boa educação são o avesso da intimidade, me ensinou Paulo), e me saia com um assunto qualquer, banal, cotidiano. Como se de fato fossemos somente bons amigos. Como se ele não conhecesse meu corpo melhor do que qualquer outra pessoa que passou ou (creio eu) venha a passar pela minha vida. Como se a minha casa não fosse durante aquele momento que vivíamos, mas ‘’nossa casa’’ do que de fato minha.

A vida se cindia entre dia e noite, amigo e amante.
Descobrir um novo Paulo foi à melhor coisa que me aconteceu. Mas eu não sabia mais... Não sabia. É isso. Absolutamente nada. Tenho ao meu lado um corpo que não fala e que quando fala me diz frases prontas, ensinamentos. É como se nunca tivesse conhecido o verdadeiro Paulo. Como se ele fosse isso, a materialização da palavra perfeito. Sem defeitos, sem humanidade. Um manequim feito sobre medida, que advinha tudo que quero - que toca tudo que me faz esquecer ‘’os porquês’’ ou a lógica das coisas. Eu odiava perguntar porque eu? Porque Paulo amava a mim e não a outra? O que eu tinha que ele não podia encontra em outra mulher? Porque quebra a regra comigo? Odiava mais ainda o silêncio que Paulo fazia a cada uma destas questões.
E odiava, acima de tudo, o que esse ódio alimentava em mim. Como se a falta de respostas, a insegurança que Paulo me passava e toda a mentira que contávamos – e sustentávamos – para todos, fosse o que me excitasse verdadeiramente. Tudo aquilo se transmutava em combustível, em tesão para o nosso encontro a noite. Quando na rua via Paulo, conversando com outra – ou até mesmo com outro - tudo que queria, era arrastá-lo para um canto qualquer e chupá-lo até esgotar cada gota de seu sêmem. Dizer um ‘’bom dia’’ formal e lhe beijar o rosto pela manha na faculdade, como se fossemos de fato somente amigos me deixava úmida como se eu estive exposta a uma cena pornográfica. Isso tudo alimentava nossos encontros, nossa transa. Tudo, absolutamente tudo que acontecia durante o dia era razão para me excitar de modo que esperar anoitecer se tornou uma tortura.  Não importava quanto eu demorava me tocando no intervalo de cada aula ou em qualquer tempo livre que tivesse, não me satisfazia - não me conhecia, não me acertava, não me dava à metade do prazer que Paulo me possibilitava com suas vindas ao meu quarto, com o seu toque ao cair da noite.
Sair de casa se tornou o pior dos castigos. Eu que nunca fui de crer em absolutamente nada, passei a rezar a cada noite – rezava baixinho, abraçada ao corpo de Paulo quando este adormecia- pedindo, suplicando a Deus que fizesse a noite passar o mais lentamente possível. Implorava a Deus para que nunca amanhecesse. Pois, o sol levaria meu homem e me entregaria um amigo.
Com o tempo somente a noite passou a me interessar.
Pela manha Paulo saia e eu ficava o dia todo em casa, esperando sua volta. Aquilo se tornou habitual. A faculdade e todo o resto não importavam. Tudo que eu queria era vê a noite cair o mais rápido possível.
A noite, após nossa transa, passei a vigiar seu sono. Olhava Paulo dormindo impassível e tranqüilo – como se tudo aquilo que fazíamos fosse normal – durante toda a noite. Não dormi passava-me a sensação de que a noite durava mais, passava-me a sensação de que o tempo junta a meu amante se estendia em algumas horas. De que até mesmo o sol respeitava seu sono. Somente conseguia adormecer quando Paulo saia para ir à aula – para vê o mundo que já não me interessava mais.
Dormi durante o dia acelerava o caminhar de tudo. Essa estratégia me fazia esperar por  Paulo por somente três ou quatro horas desperta – aliviava meu martírio. Tempo que gastava arrumando o quarto para agradar a este quando chegasse a noite, ou eventualmente me arriscando a sair de casa o mais breve o possível, e ir até o mercado mais próximo comprar algo para comermos após a transa. Não sei precisar quanto tempo ficamos assim, Paulo saindo e eu ansiosamente aguardando seu retorno – esse período é bem turvo em minha memória – o que sei é que ai, exatamente ai, neste período, começou o nosso fim.
Paulo já não me comia mais com a mesma força com que me devorava no inicio de nossas trepadas. Não me penetrava com a mesma intensidade. Passou a demorar cada vez menos sua boca em minha buceta e quando ali estava se esforçava para me fazer gozar o quanto antes. Não vinha mais trazer sua boca melada de meu sexo a minha. Não se preocupava mais comigo. O meu gozo significava para ele o fim da transa, só. Por vezes Paulo adormeceu por ali mesmo - entre minhas coxas. Com a boca melada só para si. Um sono egoísta. Por vezes eu retirava sua cabeça de entre minhas pernas, a acomodava, e delicadamente - para não desperta-lo - lambia seus lábios enquanto este dormia. Por vezes descia minha mão até meu corte e sentido que ainda estava úmido, lambuzava meus dedos e em seguida os levava até minha boca. Até minha língua. Mergulhava fundo – mais fundo que me fosse possível - meus dedos lambuzados na minha garganta.
Paulo não falava - nem mesmo seus aforismos - não abria a boca para nada, a não ser para respirar através dela enquanto me comia - quando encontrava vontade de me penetrar -, aquela típica respiração densa e disfarçada dos homens quando estes estão prestes a ejacular. Porém, seu corpo discursava. Seu corpo deixava claro todo o cansaço ou talvez o enjoou que sentia pelo meu; Paulo cansou-se de mim.
Tudo mudara
Vinha agora noite sim, noite não.
Vinha como um cão acostumado a comer o resto que algum restaurante deposita sempre pontualmente na mesma lata de lixo. O cão vem, revira o lixo e eventualmente encontra algo que lhe cubra a fome. Um animal que ora encontra comida, ora não. E isso controla o seu vai e vem. Porém, caso o cão encontre em suas andanças uma lata que tenha um lixo mais apetitoso, deixa de ir todos os dias a primeira. Caso o conteúdo da segunda não vacile, e se mantenha sempre mais apetitoso do que o da primeira lata, logo o cão deixará de visitar a primeira para sempre.  Eu agora sou o resto do resto. Certamente Paulo encontrou comida melhor para comer em Goiânia.
Não há jeito. ‘’Um homem quando encontra uma outra mulher que o satisfaça mais e melhor na cama – uma mulher que faz o que a atual não faz – esse homem não volta pra casa. ’’ Paulo dizia. Paulo alertava. Não voltaria.


Eu ficaria sozinha.

Com fome.
Sem ninguém que me alimentasse.
Seria obrigada a aprender a comer sozinha. Como um leão velho e abandonado pelo seu adestrador na selva, simplesmente por não servi mais aos caprichos do espetáculo. O leão, desde sempre em cativeiro, ou aprende a caçar ou logo morrerá de fome.
Aprendi a caçar, a buscar comida com as próprias mãos.
Aprendi
a passar a noite toda circulando o dedo em volta de meu clitóris, e penetrar-me com dois - as vezes três - dedos unidos - redescobrir meu sexo.
Comia com as mãos.  Adormecia sem escova os dentes. Acordava e antes mesmo de levantar, tomava café da manha em mim.
Um ciclo.
Processo.
Reeducação alimentar.
Tudo doía. Tudo machucava. Os olhos vermelhos de choro e os dedos dormentes de fome...
Saudade.

O ódio talvez seja mesmo o parente mais próximo do amor. Não se pode amar alguém sem um mínimo de ódio por esta pessoa. Talvez isto seja um instinto, uma estratégia da própria espécie em prol de sua sobrevivência. Talvez o ódio seja algo herdado com a evolução. Pois, somente assim, com o ódio no lugar advindo na hiância onde antes havia amor é possível sobreviver a um amor que se esvaece. O ódio tem ainda uma característica singular, uma vantagem em relação aos demais sentimentos – e sobre tudo em relação ao amor. O ódio se auto-alimenta. O amor, ao contrário do ódio, precisa de alguém o tempo todo lhe inflando o peito, lhe provando e lhe dando certeza que ‘’és o mais amado’’. O amor é frágil como um bebe prematuro, precisa de cuidados e mimos o tempo todo. O ódio não. O ódio cresce sozinho. Alimenta-se e se nutre sem a ajuda de ninguém. O ódio tem uma meta, uma linha de chegada, um objetivo. O ódio atinge um ápice: a vingança.

O amor é uma corrida em pista sem fim, infinita. É correr, correr e correr na espera de que o combustível acabe.
Ódio certamente é mais vitalizante do que o amor, o ódio leva à ação. O amor é ponto morto. É zona de conforto. O ódio através desta formula chamada vingança oferece o antídoto contra todas as feridas que ficaram abertas. E eu afirmo, fui salva pelo o ódio.
Não necessito mais de homem algum em minha vida. Corpo nenhum me faz falta, minha mão me basta. Tudo o que eu não queria era que outra mulher conhecesse a parte em que em Paulo nunca cheguei a conhecer, a junção sexo amigo. Quando a imagem   de Paulo e outra mulher qualquer me invadiam o pensamento – quando em minha cabeça via Paulo e outra mulher, andando de mãos dadas, caminhando pelas curvas de Goiânia - meu estômago doía, meus dedos começavam a tremer, minha boca salivava. E seja lá onde estivesse, precisa correr para um banheiro, precisava me tocar, me aliviar.
Pensamentos me invadiam, a imagem de Paulo conversando, se divertindo ao lado de um rabisco de traços femininos me arrebatava do nada. Uma fêmea sem rosto ou cor de pele. Uma mulher. Isso bastava para minhas pernas bambearem, minha temperatura cair e eu terminar em algum banheiro ou canto escondido, esfregando a mão em minha vagina de modo frenético. Passei a levar sempre comigo, sempre que me saia de casa, quatro ou cinco calcinhas extras.
O inferno vem de dentro.
O ódio é o melhor antibiótico que existe, e o tempo é quase como um remédio homeopático, você não crê que funcione até que comece a surti um efeito pequeno, onde você já não sabe mais explicar se melhora por efeito de medicamento ou se simplesmente melhoraria de qualquer jeito – como se isso fosse acontecer de uma maneira ou de outra, com ou sem medicação. Aquilo que é gradual sempre se torna imperceptível. O tempo não é em si a cura, é sim o produto. A anestesia natural da dor. No entanto se se cutucar bem precisamente a cicatriz com a ponta da unha, certamente ainda irá doer. Aquele que sofre por amor é como uma criança que vez ou outra cutuca o ferimento que estar em processo de cicatrização, muito mais por impaciência ou curiosidade do que por qualquer suposição de prazer no ato. Porém um dia a coisa finaliza. O ferimento se fecha e a criança volta a correr, sem medo, como se nunca houvesse sentido dor na vida. A cicatriz na pele seve como um pequeno sinal de alerta. Serve para lembrar que o mundo é sim perigoso, que machuca – mas também serve para lembra quer qualquer dor, por mais intensa que seja, passa.
Com o tempo meu corpo se acostumou com a ausência de Paulo, não que eu deixasse de imaginar seu rosto ou sua mão segurando outras em público. Todos os dias de minha vida eu vi e ainda vejo a imagem de Paulo, o que muda agora é que isso não me dói mais. Ou me dói um pouco menos.
Com o tempo fui até mesmo capaz de transar, de fuder com outras pessoas. Encontrei um novo modo de esgotar a dor que Paulo deixou em mim – dor ou vazio, não sei bem qual termo expressa com precisão o que sinto – com o tempo passei a ensinar outras mulheres tudo o que Paulo me ensinou ao longo do tempo em que estivemos juntos. Fazia em outros corpos aquilo que Paulo fez no meu. Descobrir no corpo feminino aquilo que me encanta - descobrir que provocar o gozo no outro é tão ou até mesmo mais prazeroso do que o próprio gozo.
Descobrir nos braços finos e brancos de Vanessa a opacidade que sempre procurei em nunca encontrei nas palavras de Paulo – descobrir nela o avesso do corpo. A voz. Sim, eu o odeio, e sim eu o perdoou. ‘’O amor é uma torrente continua’’ repetia sempre Paulo. ‘’É o passado é um bloco fixo, indivisível. Não se divide, para além do material, aquilo que se levará de uma separação. Não há justiça na divisão das memórias, das dores’’. Eu carregarei o vazio de Paulo comigo para sempre. Para sempre sentirei dor e ficarei excitada ao imaginar seu corpo.  Para sempre sentirei ciúmes quando de tempo em tempo me lembrar que Paulo encosta sua boca em outras bucetas, que roça outros seios com seus dedos, que passeia por ai com alguma outra mulher. Sinto inveja desta que nem conheço ou ao menos sei a fisionomia de seu rosto. E mesmo assim daria tudo para ocupar o seu lugar – para ser hoje, eu, a amante de Paulo.  Hoje Paulo me encontraria diferente na cama, eu o surpreenderia, o faria também gozar. Seria eu também para Paulo, um Ulisses. Hoje Paulo não me deixaria - jamais me trocaria por outra mulher.
Naquele tempo fui eu um objeto qualquer, fui uma improvisação – como o remendo feito em uma roupa velha e que lhe confere um novo visual, que chega mesmo a agradar por certo tempo, porém caso rasgue novamente, não se costura mais - compra-se outra, nova. Hoje eu seria especial, seria uma peça rara, de alta-costura da qual por mais que fique velha, ou ultrapassada, nunca nos livramos dela. Uma peça que mesmo desgastada se encontra prazer em vesti-la, em exibi-la para outros. Hoje eu vestiria Paulo por completo. Nada lhe faltaria.
Eu entendo perfeitamente o que fui para Paulo, pois fui o que hoje Vanessa é para mim. Um pequeno agalma, uma pecinha de brechó que se usa – um brinco, um colar, uma semi jóia qualquer, sem muito valor – que caso a percamos, não faz a menor diferença. É importante enquanto presente, mas sua ausência não deixa falta.
Olho do alto de minha janela, mais uma vez em direção a rua. Busco algo na penumbra, no vazio típico das madrugadas, busco um contorno de homem, uma sombra masculina – nada encontro.
Livro-me da bituca do ultimo cigarro. Vanessa dorme como sempre dorme quando vem me visitar. Vestida de ciclope.
Acomodo-me novamente a seu lado. Conduzo sua cabeça sobre meu peito, ajeito-lhe os cabelos, revivo a luz fosca do abajur.
‘’Se a sociedade fosse justa, ou melhor, não justa, inteligente, digamos, os jovens deveriam ser todos escravos, escravo dos velhos, e viver submetidos aos seus olhares, seus caprichos, até mesmo a sua violência, até que o primeiro sintoma de corrupção os alcançasse. Só então seriam livres’’.
Volto à leitura.
 

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