Eu ainda estou fedendo ao peixe que comi ontem
(Sara-Não-Tem-Nome)
Peixeiro
sem pegada é susshi-man (Alexandre Kumpinski)
Rebbeca
trabalha em uma pequena loja que vende peixinhos para aquários. Eu sempre
considerei ‘’peixe’’ o animal mais estúpido e ridículo da face da terra. Isso
antes de conhecer Rebeca. Rebeca é ainda mais sem graça do que os peixes que
vende.
’’Um peixinho dourado
por dez reais’’, era a promoção do dia, no dia em que conheci Rebbeca.
Ana
havia me pedido um peixinho-dourado de presente. ’’Um animalzinho de estimação
símbolo de nosso amor’’. Com um sorriso, e um leve aceno de cabeça, consenti.
Não contei para Ana as minhas ‘’observações’’ sobre peixes, não disse que o
considerava o animal mais ridículo entre todos os animais. Afinal de contas ela
tinha razão. Um peixinho-dourado era o símbolo perfeito de nossa relação.
Rebeca
recebeu-me com um bom dia todo atrapalhado. Com um sorriso de dentes brancos
que contrastava com seu aparelho odontológico azul. Bonita. Pele branca, cabelos
alaranjados. Usava um macacão cinza cor de escama. Bonita, porém sem graça, sem
sal. ’’Bom dia’’, respondi a Rebbeca. ’’Bom dia, menina peixe’’, pensei.
Conheci
Ana em um cinema de Goiânia. ’’Clube de Compras Dallas’’, foi o filme escolhido
naquela tarde. Não conhecia o filme e não tinha o menor interesse na temática
que a sinopse descrevia. Refugiei-me na sala numero três daquele cinema
simplesmente porque era Agosto. E em Agosto, sempre vou aos cinemas para vê qualquer
coisa.
‘’Um
peixinho-dourado, por favor’’, disse a Rebbeca. A menina-peixe ficou me olhando
por uns 3 segundos, imóvel. Rebbeca pareceu-me assustada. Parecia não saber o
que fazer. Parecia perdida dentro da sua própria ‘’loja-aquário’’. Assustou-se
com um cliente como um peixinho se assustaria com um predador em alto-mar. Certamente
não havia realizado muitas vendas na vida, ’’uma virgem na arte de vender’’,
concluir. E assim, adicionei mais um adjetivo ao nome que mentalmente compunha
para Rebbeca. Virgem. ’Menina-peixe-virgem’’.
Poltrona
‘’G-15’’. Escolho essa por ficar no centro da sala. Nem muito em cima, nem
muito embaixo. Sempre escolho essa por serem ‘’as poltronas dos velhos’’. Essa
é a lógica dos cinemas em Goiânia: Os casais nos cantos, os ‘’cegos’’ nas
fileiras A, B e C, os adolescentes nas ultimas e os velhos no centro
(geralmente os únicos que prestam atenção no filme e que de fato fazem silêncio).
Na realidade, sempre escolho as poltronas centrais por que assim posso dormi
sem ser incomodado.
Não foi o que aconteceu
naquele dia. ’’Oi’’, me disse a moça de cabelos curtos e óculos gigantescos ao
meu lado. ’’Oi’’, respondi espantado. Ana perguntou meu nome, minha idade, me
indagou sobre o que eu fazia da vida. Disse-me que ‘’assim como eu, também
amava cinema e em especial aquele cinema. ’’Já te vi aqui varias vezes’’,
repetia sempre. E assim conheci Ana. Menina que fala muito e escuta pouco. Que
inferiu que eu ‘’amava cinema’’ pois havia me visto ‘’ali varias vezes’’. Deixei
estar. Não disse a Ana que só estava ali pelo ar condicionado, e nem que ela
estava me atrapalhando a dormir.
Rebbeca
entregou-me o peixinho dentro de uma sacola plástica. E sem eu dizer nada,
acrescentou: ’’Não se preocupe, ele não sofre. Bom. Na verdade ele sofre sim, mas
ele não se lembra que sofreu. Então isso é o mesmo que não ter sofrido certo?’’.
Não entendi uma vírgula do que quis dizer. Minha única resposta foi um
‘’Oi’’?’’O peixinho’’, respondeu, ’’ele não se lembra que sofre. Não precisa
ter dó. A memória de um peixinho-dourado dura apenas três segundos. Assim, tudo
é novidade para ele a cada três segundos. Bonito, não?Indagou-me. ’’É... Bonito’’,
respondi lhe entregando uma nota de 20 reais. Rebeca desajeitou-se novamente. Meio
gaguejando, meio atrapalhada pelo aparelho odontológico azul que lhe parecia
retardar um pouco a fala, pediu-me para que esperasse um instante, pois ela não
tinha troco para uma nota de vinte. Isso só confirmava minha teoria de que
Rebbeca era virgem na arte de vender e que certamente eu fui seu primeiro
cliente na vida. Fiquei sozinho na loja durante alguns minutos. De fato era
tudo muito sem sal. E isso não se dava somente pelos peixes expostos serem de água
doce. Paredes beges com aquários dependurados. Um bando de peixe nadando pra lá
e pra cá. E só. Nada mais. Nem uma corzinha, nem um sinalzinho mínimo de vida. O
lugar era o inferno na terra. Um inferno molhado. O inferno aquático de
Rebbeca.
Ana
era a típica adolescente Goiana metida à intelectual que circula pelo Centro da
cidade. Bonita, pele bem cuidada. Rica e fumante.
Falava-me de como
adorava cinema, falava sobre diretores. Allen, Fellini, Scorsese e estragava
tudo no final falando-me sobre atores globais. Dizia-me que odiava a ‘’apatia
cultural de Goiânia’’, que estudava francês na Aliança e que o cinema francês
‘’é hoje o melhor cinema do mundo’’. Às vezes queria saber sobre mim, mas não
me dava tempo para responder. Ana convidou-me para mais uma sessão naquele
mesmo dia, para outra no dia seguinte, e outra... Sem nunca me escutar. Ana
tornou-se minha namorada. Confesso que o primeiro beijo que lhe dei, foi uma
alternativa desesperada para que ela cala-se a boca. Confesso também que
gostei.
Rebecca
voltou ofegante. Entregou-me o troco. E pediu-me para que voltasse sempre. Que
‘’eu era muito gentil’’. Ana e Rebbeca tinham isso em comum, ambas consideravam-me
‘’muito gentil’’, mesmo sem eu dizer nada. Voltei. Voltei mais de uma vez, porém,
não tinha a menor intenção de comprar qualquer coisa. Passava lá ‘’no inferno
aquático de Rebbeca’’, quase que diariamente, somente para ouvi-la falar sobre
coisas que eu não tinha o menor interesse em ouvir. Contava-me sobre o oceano, que
tinha 9,65 quilômetros de profundidade e que nenhum peixe podia viver ali, nas
profundezas, por causa da pressão e da completa falta de luz.
Rebbeca era como uma
aula boa de filosofia. Era agradável de ouvir mesmo sem se compreender nada. Rebbeca
era um papo banal-sem-fundo. Tão sem fundo quanto os 9,65 quilômetros de
profundidade do oceano.
Entreguei o peixinho-presente de Ana no dia 15 de Agosto.
Foi o dia em que nos conhecemos. Ana colocou um aquário de 30x30 em seu quarto,
na estante de livros em frente a sua cama. Antes já era desconfortável transar
em sua casa. Agora com esse peixe retardado nos observando é ainda pior. Nemo é
o nome do peixe símbolo de nosso amor. Nemo foi o nome mais criativo e original
que minha namorada pseudo-intelectual de Goiânia conseguiu ‘’inventar’’. Ana
dizia que o peixe nadava todo feliz quando ela chegava da faculdade e também quando
me via. Fiquei com vontade de contar a Ana que a memória daquele bicho só
durava três segundos, sendo assim, ele não sabia quem era eu ou ela, mas
preferir me calar. Ana certamente iria começar um discurso filosófico de como
‘’era bonito isso da memória dura somente três segundos’’. E que alias ela
havia assistido há pouco tempo atrás um filme com esse titulo (Goldfish Memory).
Que o filme era ótimo, afinal era francês, e que utilizava disso da ‘’memória
de três segundos dos peixinhos-dourados’’ para fazer uma metáfora entre amor, traição
e perdão. Que a memória dos amantes deveria ser como a de um peixinho-dourado. Que
deveria durar apenas três segundos e assim a tudo perdoar, tudo esquecer. Deste
modo nós nos apaixonaríamos infinitas vezes na vida. Eu sabia de tudo aquilo, sabia
que Ana iria falar por horas. E que o peixinho símbolo do nosso amor, se
tornaria mais ainda insuportável aos meus olhos. Por isso, tudo que fiz foi
sorrir.
Nunca falei sobre Rebbeca para com Ana. O contrario sim. Rebecca
sabia que eu havia comprado o peixinho-dourado para uma moça chamada Ana. ’’Ana.
É sua namorada?’’, me perguntou em uma tarde de Janeiro. Tarde em que a beijei
pela primeira vez. ’’Sim’’, respondi. Rebbeca não reagiu. Não se incomodou. Apenas
me beijou novamente. Aquela tarde de Janeiro, se tornou noite ao lado de Rebbeca.
E da lojinha de peixes fomos para a sua casa, para o seu quarto. Descobrir que
não era somente como vendedora de peixes que Rebbeca era virgem. Descobrir a
pele que existia por debaixo de suas ‘’escamas’’. Sentir o gosto de seu corte, e
para meu espanto, não era gosto de peixe. Acordei no dia seguinte ainda ao seu lado,
não me levantei da cama de imediato, como costumo fazer quando durmo ao lado de
Ana. Encarei Rebbeca dormindo durante algum tempo. Tudo me pareceu tão harmônico.
Tão tudo no seu lugar. Rebbeca dormindo com a boca entreaberta, respirando
lento e profundamente. O quarto azul-marinho, bem decorado, poucos livros e
algumas fotografias nas paredes. A fresta de luz que atravessava a janela e a
cortina branca atingindo foscamente o piso, criando um raio de luz que condensava
e deixava visíveis as pequenas partículas de pó. Era um oceano de micro partículas,
que vinham descendo pelo alto da janela e desaguavam nos pés semi-cobertos de Rebbeca.
Por um instante Rebbeca ali,dormindo, pareceu-me a mulher mais bonita do mundo.
Levantei-me devagar. Não
queria decompor aquela cena. Apesar de meu esforço, sempre me atrapalho em
fazer silêncio. ’’Aonde você vai? Rebbeca perguntou, quando eu já estava
vestindo a camisa. ’’Anna’’, respondi. Com um aceno leve de cabeça, Rebbeca fez
que ouviu. Virou-se para o outro lado da cama, me dando as costas, e voltando a
dormir.
‘’Nemo’’. Disse-me Ana, assim que entrei em seu quarto
após receber sua ligação me pedindo que‘’viesse imediatamente’’. O que tem?’’,
respondi. Sentada na cama com os olhos vermelhos de choro, apontou para o aquário.
Vi o peixe idiota boiando de modo que o tornava ainda mais idiota. Morto. Ana
havia se esquecido de ligar o motor que oxigenava a água. Sentei-me ao seu lado.
’’Faça alguma coisa amor’’, choramingou me abraçando. Fiz o melhor que pude. Joguei
o animal tosco na privada e dei descarga três vezes. Era isso, ou o saco de lixo.
Ana chorou um choro profundo. ’’A pior morte de todas... Morrer na agonia... ’’,
interrompi seu drama aquático. Contei-lhe a historia sobre a memória de três
segundos de duração dos peixinhos-dourados. Ana cessou o choro, e fez todo
aquele discurso filosófico de como tudo aquilo era bonito. O peixinho símbolo
de nosso amor desceu pela privada, ser tornando um discurso intelectualizado de
Ana. Ana era mesmo muito previsível.
‘’O nosso amor é aquariano’’, disse Rebbeca, assim que
entrei na loja. ’’O que?”“, respondi. ’’O nosso amor nasceu em Janeiro.
Portanto, é aquariano. ’’. Naquele instante Rebbeca me pareceu ainda mais débil
do que quando a conheci. ’’Olha, eu preciso de outro peixinho-dourado. ’’,disse,ignorando
suas digressões astronômicas.
Rebbeca me entregou-o
da mesma forma que entregou o primeiro. Sacolinha de plástico. Dei-lhe um beijo
no rosto, me encaminhando para a saída. ’’É pra ela de novo?’’, perguntou
quando eu já estava na porta de saída da loja. ’’Sim. Eu nunca compraria um
animal idiota desses. ’’, respondi sem pensar nas palavras que dizia. ’’Animal
idiota?” Questionou Rebbeca ‘’você não gosta de peixes, né? ’’, completou. Sair
sem nada responder.
A frase de Rebbeca
ecoou na minha cabeça durante o resto do dia. ’’Você não gosta de peixes’’.
Naquele dia não fui à
casa de Ana. Fui direto para minha casa. Direto para o banheiro. De frente a privada,
ergui o saquinho plástico e encarei seu conteúdo. ’’Oi, eu sou seu assassino. E
antes que eu termine essa frase, você se esquecerá de mim’’. Derramei dentro da
privada minha vitima dourada, e novamente dei descarga três vezes.
Cheguei à noite à casa de Ana, com uma caixa de sapatos
por de baixo dos braços. ’’O que é isso?’’, Indagou-me. ’’Abra’’, respondi lhe
entregando a caixa de um Ferrarini de meu pai. Ao abrir a caixa Ana deu a
risada mais sincera e gostosa que já a vi dá nesses nossos três anos de namoro.
’’É um jabuti’’, respondi ’’o novo símbolo de novo amor. Malemolência e vida
longa Ana’’. Ana me abraçou, e repetiu minhas palavras, ’’vida longa ao nosso
amor!’’. Ana é a pseudo-intelectual de óculos gigantes que facilmente
encontramos em Goiânia. Ana é fumante, critica tudo, e não entende, de fato,
sobre nada. Ana sou eu no espelho. Às vezes deduzo que Ana freqüentava os
cinemas, não pelos filmes, mas sim, pela possibilidade de encontrar alguém como
ela, alguém que a distraísse desse marasmo que é nossa cidade, sobretudo alguém
que a escutasse, sem se incomodar pela sua fala pseudo-politizada. Eu fui essa
pessoa. Fui o milagre na vida de Ana. Eu freqüentava os cinemas pelo ar
condicionado. E Ana na minha vida, foi uma pequena benção. Foi o meu pão e o
meu vinho, e eu por puro egoísmo, por não me dar por satisfeito com nada,
queria também o ‘’milagre dos peixes’’. Deus não me deu. Esse eu pesquei com
minhas próprias mãos. Não ‘’foi uma pescaria daquelas, das boas’’. Foi fácil,
chato. Um peixinho pequeno de água doce. Sabe aqueles peixinhos que você pesca
e fica com dó de levar para casa? Sabe aqueles peixinhos que de tão
insignificantes, tão até preguiça de comer? Pois então, foi o melhor que
conseguir pegar.
Hoje fui à loja de Rebbeca. Contou-me as mesmas coisas de
sempre. Peixes, o oceano e seus 9,65 quilômetros de profundidade, o mar, o
desconhecido das profundezas. Hoje mais uma vez transei com Rebbeca. No dia
seguinte a mesma cena se fez: A fresta
de luz. O pó. A boca entreaberta. A respiração profunda e lenta, como a de um
peixe ‘’se afogando’’ na encosta de um rio.
Fintei-a como um
pescador finta um peixe que levou horas para pescar e que agora estar preste a
devolvê-lo. Levantei-me, dessa vez, tomando cuidado algum para fazer silêncio,
esperava que Rebbeca abrisse os olhos. E assim foi. ’’Já?’’, perguntou com a
voz mansa de sempre. ’’Sim, Rebbeca’’. ’’Até mais tarde então’’, disse. ’’Não, não
haverá um ‘’mais tarde’’. Olhou-me com seus olhos de peixe-morto por uns três
segundos e disse ’’Ana?’’. Fiz silencio. Rebbeca sorriu, e como de costume, virou-se , me dando as costas, voltando a dormi.
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