Só o inimigo não
trai nunca. (Nelson Rodrigues)
A amizade e a
lealdade residem numa identidade de almas raramente encontrada. (Epicuro)
‘’A leitura não nós
obriga a ser monogâmicos. Podemos ser poligâmicos e fieis, diferentes das
relações humanas, que nós obriga a ser monógamos e infiéis’’, Ramona respondeu
a minha perguntar- pergunta que alias, havia feito por educação- com essa
frase. Uma pergunta simples: ‘’Quais seus autores prediletos?”“, uma resposta
complexa e bem trabalhada por parte de Ramona. Pareceu tentar impressionar...
Mesa para quatro.
Aniversario de Renato.
Meu melhor amigo.
Renato se fechava em
uma discussão com o rapaz loiro e sem sal que a essa alturo já colocara a
cadeira de madeira do restaurante colada a cadeira de meu amigo, Proust ou
algum assunto político os absorviam.
Dois de lá, dois de cá.
Entre eu e Ramona. Um
silencio mortal.
Então, para quebrar o
gelo, perguntei. E ela respondeu de modo mais do que inesperado,
’’... A leitura não nós
obriga a ser monogâmicos’’.
Desde então como em um
filme velho que décadas após seu lançamento é remasterizado, ou como em uma
peça grega ou inglesa clássica, como digamos assim, um Hamlet ou um mito de Ganímedes,
textos batidos, mas que ganham sempre um tom novo, uma roupagem especial com um
novo ator. Assim foi Ramona para mim. Ganhou um novo visual, novas cores, novo
brilho e se tornou- assim como os textos-, mesmo para quem conhecesse os
diálogos linha por linha-, uma experiência completamente diferente. Assim foi
Ramona aos meus olhos após aquela frase. Seu rosto fino e seu cabelo em curvatura
intencionalmente torta me apareceram, como se eu, de fato a olhasse pela
primeira vez. Frase que seus lábios pronunciaram de modo tão lento e natural,
mas que meus ouvidos receberam como uma sonata de Bach. Inesquecível.
Não tive tempo à
resposta... O meu meio milésimo de segundo em silencio- milésimo de segundo, dedicado
a reparar cada linha do rosto de Ramona, logo foi interrompido pela mão erguida
de Renato e de seu amigo – não me recordo o nome. Renato propunha um brinde
pelo seu próprio aniversario.
Com as taças erguidas,
agora eu, Ramoa, ele e seu amigo.
Agradeceu a mim, ‘’Ao meu
melhor amigo, amigo leal, amigo de velha de data!’’, tocando sua taça na minha.
A Ramona, ‘’A mulher da minha vida, aquela que me ensinou o que é ser homem’’,
dando-lhe um beijo rápido. E a... (não me recordo o nome), ‘’amigo recente mas
que já me ganhou o afeto’’.
Enfim brindamos.
Quatro taças se
debatendo uma contra a outra no ar.
Bebemos.
E eu me surpreendi,
quando me vi prestando atenção na gotícula minúscula de vinho tinto que
escorria lentamente pelo canto direto da boca de Ramona, no inicio de seus
lábios imperceptível por a cor do vinho se misturar com a cor o batom que lhe
cobria toda a boca, em seguida, se fazendo minimamente visível, na medida em
que escorria letargicamente maxilar abaixo. Gotícula que logo desapareceu
perdida entre os lábios dela e de Renato, quando este lhe deu um beijo. Este
sim, mais prolongado.
Camisa Amarela, um
samba-canção de Nara Leão, tocava baixinho, quando me levantei para ir ao
banheiro.
Uma duas taças de
vinhos, no maximo, era o que havia tomado, dei-me conta quando já estava em
frente a pia branca do restaurante, com a torneira já aberta, que não tinha a
menor vontade de usar o banheiro. Lavei o rosto.
Vi minha imagem
refletida no espelho.
A imagem da gotícula
minúscula de vinho escorrendo pelo lábio direito da boca de Ramona me veio à
cabeça, me distrair por alguns segundos, voltei a mim quando água da torneira
parou de cair. Apertei novamente o registro.
Enchi as palmas das
mãos, unidas em forma de concha, e joguei bruscamente no rosto.
Ponteio, de Edu Lobo
tocava quando me sentei à mesa novamente.
Dois Taxis.
Aparentemente o ‘’rapaz
sem nome’’, morava próximo a minha casa.
Despedida.
Gritos, aperto de mãos
fortes, e abraços mais fortes ainda em Renato. Beijo no rosto de meu melhor
amigo. ‘’Até breve’’.
Corpo franzino. Braços
curtos. Beijo leve. Na verdade deixei meus lábios caírem e tocarem o mais breve
o possível a maçã direita do rosto de Ramona – ainda era possível sentir seu
hálito leve e adocicado pelo vinho, ‘’até breve’’, sussurrou-me ao pé de minha
orelha.
Sempre que um amigo perguntava-me
sobre Ramona, a observação ‘’ela é linda’’, acompanhava a pergunta quase que de
modo instantâneo. Assim como minha resposta, ’’ Claro que é! Renato sempre teve
bom gosto para mulheres’’. Eu não sei por que respondia aquilo com tamanha
prontidão, Ramona era, até onde eu me lembro, foi à primeira namorada de
Renato. Nunca antes o vi com outras mulheres, fossem namoradas, amigas ou
qualquer uma dessas denominações que se tão a um relacionamento hoje em dia.
Hoje as conjecturas da
pergunta não mudaram. Mas juntamente com minha resposta, uma avalanche de imagens
me vêem a mente: os lábios, o cabelo, o olhar de Ramona. ‘’Sim, sim. É linda...
’’, respondo de modo ainda mais esquio do que antes.
A primeira vez que vi
Ramona nua, sentir vontade de sair correndo, de me matar.
’Frouxo’’, disse
Ramona.
‘’Seremos amigos
eternos’’, a voz de Renato ecoava em meus ouvidos. Frase que ele disse com o
nariz sangrando e as mãos esfoladas. Conheci Renato em uma briga no campinho de
futebol da rua abaixo a minha casa, tínhamos 14, 15 anos no maximo. Eu e ele
jogamos no mesmo time pela primeira vez naquele dia, e logo ganhei sua
admiração quando um rapaz do time rival lhe fez uma falta muito mais dura do
que o necessário. Foi assim que Renato esfolou o braço, uma queda. E eu lhe
tomei as dores, indo logo aos socos e chutes para defender ‘’meu amigo desconhecido’’.
Uma briga generalizada logo se formou. Time contra time. Foi assim que Renato
quebrou o nariz, soco.
‘’Obrigado cara. Foi a
minha primeira briga, sempre fui meio frouxo com essas coisas’’, me confessou
Renato algum tempo depois, quando nossa amizade já ia a passos largos.
Agora eu estava ali,
com a mulher que ‘’torrnara homem’’ meu melhor amigo, nua perante mim.
‘’Frouxo’’, ‘’Oi?’’,
‘’Você é frouxo’’, repetiu.
E assim como sua
resposta no restaurante, essa sua forma de quebrar o silencio, que apesar da
nudez de nossos corpos, novamente parecia impenetrável entre eu e ela, foi mais
um tapa em minha cara.
Uma ereção. Uma ereção
foi o que me ocorreu. Uma ereção como eu não tinha há anos. Meu pau não ficou
duro pela nudez de Ramona exposta a mim, ou pela possível erotização da
situação toda. Afinal, o que uma traição tem de pecaminosa, tem também de
excitante. Meu pau ficou duro pela sua frase ‘’ larga de ser frouxo’’.
Pronunciada de modo comum, como quem pede um copo de água ou pergunta um
endereço a um desconhecido. Ramona nua, deitada na cama, com as pernas
semi-abertas e os braços jogados por de trás da cabeça, me olhando de baixo
para cima, dizendo ‘’larga de ser frouxo’’ com um sorrisinho sínico que lhe
cobria metade da boca foi à coisa mais excitante que vi na vida. Lembrei-me de
Renato novamente, dizendo, ‘’a mulher que me fez homem’’.
Ramona não parecia se
incomodar por estar traindo Renato, não parecia, de modo algum, se incomodar
por estar traindo Renato comigo. Seu melhor amigo. Aliás, eu também não parecia
me incomodar. Agora neste quarto somente eu e ela trancados durante duas horas.
Eu e ela sozinhos. Nus. Sem nós conhecemos. Tendo uma traição como o único elo
entre nós. Tínhamos na nudez e no conforto de uma perversão a liberdade para
sermos os monstros que sempre soubemos ser. Ramona e eu pertencíamos ao mesmo
grupo de pessoas, as que traem.
Transar com Ramona era
como participar de um filme pornô interativo. Nada era proibido, tudo era na
verdade, exigido, implorado por ela. A vergonha habitual que consome os casais
quando se despem e se tocam pela primeira vez, não acontece quando se transar
com Ramona. A primeira vez que transamos teve uma carga de falsa intimidade
como nunca pensei ser possível. Um exemplo disso foi a sua exigência de fazer
tudo às claras, ‘’Eu preciso, necessito, vê você me tocando’’, falava em tom
forte, seco, como o tom de quem dá uma ordem a um subordinado. Era como uma
dança liberal, libertina. Uma dança aonde quem conduz o compasso da situação
não é o macho e sim a fêmea. Ramona conduzia minhas mãos, guiava minha boca,
segurava e soltava minha língua, meu membro, quando assim desejasse. E se
fingia deixar guiar por mim quando bem entendia. Era tudo muito bem mascarado,
dissimulado. Tudo muito falso e verdadeiro ao mesmo tempo, era como comer uma
daquelas comidas de fastfood, instantânea e simulacra, mas que sacia a fome da
mesma forma. Ramona se fingia submissa para conduzir meu corpo. Transar com ela
foi como participar de um ballet muito bem ensaiado, onde até mesmo eu, que não
sabia nem sequer o ritmo da valsa, conseguir me sair extremamente bem, graças a
sua condução de maestro.
Ramona era a perfeita
tradução, a perfeita ‘’carnificação’’ da palavra ‘’inédito’’. O que ela falava,
o que ela não falava, o que ela deixava ou não de fazer na cama. Tudo com
Ramona era como uma primeira vez, marcante e inesquecível.
O teto do motel era
branco. Branco com pequenas ranhuras nas bordas. Acho que o fitei durante uns
dez minutos após Ramona abandonar meu corpo. Deitado com o lençol me cobrindo
as pernas e parte da virilha. Ela foi a primeira a sair da cama, debruçou-se
sobre a janela, ainda nua e acendeu um cigarro. ’’ Você fuma?’’, perguntou.
Demorei alguns segundos para responder, encantado com a cena toda. Ramona de
costa, em pé, segurando o cigarro contra a luz cinzenta que vinha pela janela e
invadia primeiro seu corpo, depois o quarto por inteiro- quarto que agora já se
encontrava na penumbra rosada, clássica dos fins de tarde em Goiânia, durante
os primeiros meses do ano. ‘’Fumo’’, respondi.
‘’Isso não é estranho
para você?’, questionei com o cigarro já acesso, lhe fazendo companhia na
janela, ’’Isso o que?’’, respondeu. ’’ Isso. Traição... ’’, Não, não é... ’’
respondeu com a mesma voz plácida e estimulante que as mulheres geralmente
fazem somente quando estão na cama. ‘’Hmmm... Você já vez isso antes?’’, Já’’,
continuou, ’’ E quer saber? Eu vou fazer isso de novo. Pode ser com você ou
não, mas vou fazer de novo. ’’. Quis implorar a Ramona que fosse comigo, me
calei.
‘’Sinto que poderia
dividi tudo com você’’, me disse Renato, entregando o cigarro que há segundos
atrás estava em sua boca, quando juntos começamos a fumar. Era cheio dessas
frases que me assustavam, mas logo se tornavam comuns, cotidianas. Eu e ele
logo passamos a dividi tudo mesmo. A garrafinha de água, o cigarro, o isqueiro,
vira e mexe Renato usava alguma camisa minha. Eu usava alguma dele. Quem nos via
por fora, certamente apostava que nos compúnhamos um casal. Durante um tempo,
no começo, quando ouvia as frases dúbias de Renato pelas primeiras vezes, até
mesmo eu cheguei a cogitar a possibilidade de ele ser sim gay. Mas meses depois
Renato me apareceu com Ramona, ‘’Moça incrível, linda!’’, contou empolgado. Seu
relacionamento com ela não alterou em nada a nossa amizade, pelo o contrario, a
fortaleceu. Se antes eu ficava com o pé atrás com a sexualidade de meu amigo e sobre seus ‘’interesses’’ em nossa amizade até
então ‘’sincera’’, agora esse já não era mais o caso. Renato tinha uma namorada,
e isso fortaleceu mais nossa amizade, fortaleceu nossa intimidade. Passamos a
dividir ainda mais nossos objetos, nossas afeições. Já era comum ficamos sempre
juntos, e juntos na casa dele ou na minha nos deitamos na mesma cama para assistir
algum filme de Allen ou Fellini e ali, igualmente juntos, adormecíamos. Assim,
não era nada incomum Renato acordar primeiro que eu e ir a cozinha passar um
café. Sair, comprar pães e cigarros e gentilmente esperar meu despertar. ’’
Cigarros e café meu velho’’, ouvia Renato dizer quando, ainda meio zonzo por
causa da habitual forma brusca com a qual me levanto da cama, me dirigia a seu
encontro na cozinha.
Beijos no rosto,
segredos, toques e caricias. Era normal eu dormi no colo de Renato enquanto
esse mexia em meus cabelos ou vice-versa. Tudo isso aumentou freneticamente ou
até mesmo começou com a chegada de Ramona a vida de Renato.
Com a chegada de Ramona
as nossas vidas. Não a conhecia. Fora a ocasião do aniversario de Renato, a
havia visto apenas uma única vez, em uma noite em que saímos juntos eu, ela e
Renato, e eu embriagado, não me recordo como ou porque voltei para casa.
Lembro-me – lembro-me muito bem, aliás- que essa foi à primeira vez em anos, que
sair com Renato e não voltei para casa com ele, ele que era meu vizinho e meu
companheiro indispensável.
Pensei tudo isso já em
casa. Fumando. ‘’Sinto que podemos dividir tudo’’, a voz de Renato ecoava em
minha cabeça. Queria pegar o telefone e discar o numero que sabia de cor a mais
de quinze anos, dizer: ‘’Agora dividimos a mesma mulher, meu velho. ’’
Eu e Ramona passamos a
nos encontrar com certa regularidade. Ao menos uma vez por semana nos
encontrávamos no mesmo motel em que transamos pela primeira vez, no mesmo motel
em que pela primeira vez, juntos, traímos Renato. Sempre chegava mais cedo do
que eu, sempre me esperava já nua na cama. Com uma calcinha sempre diferente ou
sem peça intima alguma. Ora tão desperta como quem acabara de cheirar sozinha
três ou quatro papelotes de cocaína durante horas, ora dormindo com tamanho
despojamento como quem dorme em sua própria cama. Nunca a encontrava ‘’compondo
a mesma cena’’, não sei ao certo, mas às vezes tinha a sensação de que, até
mesmo mais importante do o ato sexual em si, mais importante do que ter ou dar
prazer, o que interessa mesmo a Ramona era a manutenção estética da cena que se
passaria naquele quarto de motel velho no centro de Goiânia. Me surpreender era
o que de fato estava em jogo. Um dia a encontrei dormindo pela segunda vez, e
pela primeira vez a via, a enxergava de modo igual, de modo já visto antes,
repetitivo. Ainda mais comum e liberta do que a primeira vez que a vi dormindo.
Ramona dormia com os cabelos amarrados para trás, usando calça jeans, camisa
cinza e meias brancas. Um sapato se encontrava na entrada do quarto, o outro
próximo a cama. Não despertou com a minha chegada. Sentei no chão, acendi um
cigarro e durante 20 ou 30 minutos a observei dormi. Naquele dia, de modo
também surreal, tive a sensação de pela primeira vez vê Ramona fazendo algo de
verdade. Sem fingir. Os seus cílios tocavam uns aos outros de modo sutil, deixando
uma pequena brecha pela qual era possível enxerga a parte branca de seus olhos.
Olhos que se moviam em frenesi. Ramona sonhava. Seria comigo? Com Renato? Ou
seria ainda com um terceiro? Quem abrigava os sonhos de Ramona? O corpo, ao
menos durante aqueles dias, era meu. Mas e seus sonhos? Pertenciam a mim
também? O corpo pequeno, cabelos curtos, lábios finos. Frágil, Ramona é frágil.
Pude até mesmo imaginar seu corpo dentro de uma daquelas caixas comercias, com
um aviso escrito em vermelho, ’’ este lado para baixo. Cuidado, frágil’’.
Ramona dormindo estava entregue a mim, como nunca estivera antes.
Despertou.
Abriu os olhos e me viu
a sua frente, sentado no chão em posição de quem pratica yoga. Pernas cruzadas
sobre elas mesmas. Cigarro a mão. Pareceu se assustar.
Pareceu sentir medo por
ser surpreendida na cama, dormindo, ao invés de me surpreender naquele dia.
Pupilas dilatadas. Levantou de sobre salto, não me dirigiu palavra. Um tênis.
Outro. Saiu. O quarto cheirava a cigarro e a naftalina. Naquele dia não transamos.
A parti daquele dia
não transamos mais.
Ramona e eu nos
comunicávamos por e-mail. E eu não sabia seu telefone, seu endereço, não sabia
nada.
Ramona foi como um
espectro que passou por minha vida. Uma fantasmagoria. Uma mulher morta vestida
de branco, ou melhor: uma mulher morta, nua, que me assombrou na estrada à
noite. E somente eu sei o medo que sentir, somente eu sei que era real. E não
posso contar isso a ninguém. Ninguém acreditaria em mim. Ninguém além de
Renato, e Renato é o único que não deve ouvir minha historia sobre fantasmas.
Estava sozinho no
mundo. Não havia absolutamente ninguém com quem pudesse conversar sobre Ramona,
sobre a traição que debrucei contra o meu melhor amigo. E principalmente sobre
o medo que sentia de nunca mais tocar o corpo de Ramona, de que Ramona nunca
mais me usa-se para o seu bel-prazer. Era apenas eu, sozinho. Eu e Ramona nua
desfilando em minha mente. Tão surpreendente e inquietante quanto se estive
aqui, ao meu lado, viva.
Eu fumava, fumava
muito.
Sozinho. Férias.
Não tinha animo, na
verdade não tinha coragem para ir à casa de Renato. Apesar do ímpeto que de
hora em hora me transbordava de vontade de ir até ele, de lhe contar tudo, lhe
pedir perdão. E implorar que me desse o numero do telefone de Ramona. Implorar
para que me mostrasse a casa onde ela morava. Que me entregasse ele, com suas
próprias mãos, uma foto dela. Qualquer coisa, qualquer coisa... Um pedacinho de
Ramona para mim que tremia de abstinência.
‘’Vou fazer isso de
novo. Pode ser com você ou não, mas vou fazer de novo. ’’
A frase e a imagem de
Ramona nua, fumando debruçada na janela, me atingiram a memória quando eu estava
na cozinha bebendo água direto do gargalo da garrafa de vidro. Garrafa que
atirei contra a parede de imediato, ‘’Pode ser com você ou não, mas vou fazer
de novo. ’’
Cai no chão em pranto.
Imaginei, ou melhor, as
imagens me invadiam a mente sem a minha permissão: Ramona nua, transando com
outro homem. Conduzindo as mãos e o membro de outro. Brincando com a língua de
outro em sua boca. Dançando, nua na cama, com outro.
Mas quem?
Lembrei-me do rapaz
loiro, de olhos verdes e pele branca, quase que transparente que acompanhava eu
e Ramona no aniversario de Renato. Não sabia seu nome, não ouvi sua voz uma
única vez sequer... Na cozinha, arrastei-me até a terceira gaveta do armário.
Peguei uma faca. E ainda chorando, agora com a faca nas mãos, desferir golpes
no ar. Imaginei-me matando o loirinho de pele clara. Seu sangue vermelho-rosa
se esparramando pelo chão do restaurante onde comíamos. E Ramona vendo tudo de
longe, com a mesma cara de quem já viu tudo no mundo, me olhando sangrar o
rapaz, espantada. Isso ela ainda não tinha visto, ainda não tinha visto eu
matando o loirinho a facadas. Sorrir. No chão, faca na mão, o gosto das lagrimas
salgadas me vinha à boca, agora aberta pelo meu sorriso de satisfação. Uma
salivação espessa me atrapalhava a respirar normalmente.
A Campainha toca.
Levanto-me, rapidamente
guardo a faca e lavo o rosto.
Chovia. Chovia
torrencialmente. Chovia como se costuma chover nos dias de Junho em Goiânia.
A campainha soou
novamente.
Abri.
Renato.
Entrou.
Abraçou-me forte.
‘’Ramona foi embora. ’’, falou. ‘’Como assim? Foi embora?’’, respondi, me
controlando para não cair no choro como uma criança. ‘’Assim, foi embora’’. ‘’E
você não fez nada?’’, Não’’. Respondeu com a calma de um monge budista.
‘’Não?”’, retorqui;
Renato não respondeu. Se dirigiu para o meu quarto, deixando no chão um rastro molhado.
Já havia tirado os tênis, no caminho foi se despindo. A camisa foi à primeira
peça de roupa que ele desgrudou de sua pele encharcada, deixando a mostra suas
costas negras. Em seguida as calças. Sumiu em meu quarto. Fui à cozinha. Água
no forno. Café.
Renato voltou em
seguida. Ainda sem camisa, descalço, usando uma bermuda minha. Toalha sobre os
ombros.
Tatuagem em forma de
águia no peito esquerdo.
Eu encostando-me a pia
da cozinha, observando a água ferve.
Puxou uma cadeira,
começou a falar, ‘’É isso cara. Olha, você nem ao menos conheceu Ramona direito,
eu namorei durante três anos com ela, e você, meu melhor amigo, nem sequer a
conheceu direito. Sei que você sabe que gosto muito dela, mas não se preocupe
comigo’’, disse, enxugando os cabelos encaracolados.
Por um instante a
vontade de chorar passou. Eu não estava mais sozinho no mundo com Ramona dando
voltas e voltas nua em minha cabeça. Meu melhor amigo estava comigo.
‘’Sabe’’, voltou a
falar, ‘’Eu sinto falta de tomar uma cerveja e voltar bêbado para casa com meu
melhor amigo. Foram três anos cara, três anos de namoro. Três anos que deixei a
vida passar e me dediquei a Ramona. Agora eu voltei. Agora nós voltamos’’,
disse sorrindo já vestindo a camisa que também era minha. ‘’Nós voltamos?’’,
questionei. ‘’Sim, nós, eu e você. Juntos, como antes. ’’
Café pronto.
Servi-lhe em uma caneca
de cor vinho, presente dele a mim. Ofereci cigarro. ‘’Voltou a fumar?”“, disse
enquanto com uma mão segurava a caneca e com a outra fazia que não aceitava.
‘’Voltei’’, respondi acendendo um cigarro na chama ainda flamejante do fogão.
Renato levantou-se de um salto da cadeira, tomou o cigarro de meus lábios, e
deu uma tragada forte, dizendo, ‘’ ‘’Que se dane! Nós podemos dividir qualquer
coisa, até mesmo um câncer de pulmão. ’’ Caímos na risada. Deixei meu cigarro
com ele e acendi outro para mim. Renato me abraçou forte, ‘’Eu voltei amigão. ’’,
sussurrou, ‘’Nós voltamos’’, respondi envolto em seus braços.
Naquela noite fumamos
uma carteira inteira.
Conversamos como nunca.
Conversamos como dois amigos que não se vêem há três anos.
Chovia torrencialmente
em Goiânia.
Era Junho.
Naquela noite
assistimos Desconstruindo Harry, de Allen.
Naquela noite, após
três anos, eu e Renato
Adormecemos na mesma
cama novamente.
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