segunda-feira, 2 de março de 2015

O Calice de Warren



Só o inimigo não trai nunca. (Nelson Rodrigues)
A amizade e a lealdade residem numa identidade de almas raramente encontrada. (Epicuro)


‘’A leitura não nós obriga a ser monogâmicos. Podemos ser poligâmicos e fieis, diferentes das relações humanas, que nós obriga a ser monógamos e infiéis’’, Ramona respondeu a minha perguntar- pergunta que alias, havia feito por educação- com essa frase. Uma pergunta simples: ‘’Quais seus autores prediletos?”“, uma resposta complexa e bem trabalhada por parte de Ramona. Pareceu tentar impressionar...
Mesa para quatro.
Aniversario de Renato. Meu melhor amigo.
Renato se fechava em uma discussão com o rapaz loiro e sem sal que a essa alturo já colocara a cadeira de madeira do restaurante colada a cadeira de meu amigo, Proust ou algum assunto político os absorviam.
Dois de lá, dois de cá.
Entre eu e Ramona. Um silencio mortal.
Então, para quebrar o gelo, perguntei. E ela respondeu de modo mais do que inesperado,
’’... A leitura não nós obriga a ser monogâmicos’’.
Desde então como em um filme velho que décadas após seu lançamento é remasterizado, ou como em uma peça grega ou inglesa clássica, como digamos assim, um Hamlet ou um mito de Ganímedes, textos batidos, mas que ganham sempre um tom novo, uma roupagem especial com um novo ator. Assim foi Ramona para mim. Ganhou um novo visual, novas cores, novo brilho e se tornou- assim como os textos-, mesmo para quem conhecesse os diálogos linha por linha-, uma experiência completamente diferente. Assim foi Ramona aos meus olhos após aquela frase. Seu rosto fino e seu cabelo em curvatura intencionalmente torta me apareceram, como se eu, de fato a olhasse pela primeira vez. Frase que seus lábios pronunciaram de modo tão lento e natural, mas que meus ouvidos receberam como uma sonata de Bach. Inesquecível.
Não tive tempo à resposta... O meu meio milésimo de segundo em silencio- milésimo de segundo, dedicado a reparar cada linha do rosto de Ramona, logo foi interrompido pela mão erguida de Renato e de seu amigo – não me recordo o nome. Renato propunha um brinde pelo seu próprio aniversario.
Com as taças erguidas, agora eu, Ramoa, ele e seu amigo.
Agradeceu a mim, ‘’Ao meu melhor amigo, amigo leal, amigo de velha de data!’’, tocando sua taça na minha. A Ramona, ‘’A mulher da minha vida, aquela que me ensinou o que é ser homem’’, dando-lhe um beijo rápido. E a... (não me recordo o nome), ‘’amigo recente mas que já me ganhou o afeto’’.
Enfim brindamos.
Quatro taças se debatendo uma contra a outra no ar.
Bebemos.
E eu me surpreendi, quando me vi prestando atenção na gotícula minúscula de vinho tinto que escorria lentamente pelo canto direto da boca de Ramona, no inicio de seus lábios imperceptível por a cor do vinho se misturar com a cor o batom que lhe cobria toda a boca, em seguida, se fazendo minimamente visível, na medida em que escorria letargicamente maxilar abaixo. Gotícula que logo desapareceu perdida entre os lábios dela e de Renato, quando este lhe deu um beijo. Este sim, mais prolongado.
Camisa Amarela, um samba-canção de Nara Leão, tocava baixinho, quando me levantei para ir ao banheiro.
Uma duas taças de vinhos, no maximo, era o que havia tomado, dei-me conta quando já estava em frente a pia branca do restaurante, com a torneira já aberta, que não tinha a menor vontade de usar o banheiro. Lavei o rosto.
Vi minha imagem refletida no espelho.
A imagem da gotícula minúscula de vinho escorrendo pelo lábio direito da boca de Ramona me veio à cabeça, me distrair por alguns segundos, voltei a mim quando água da torneira parou de cair. Apertei novamente o registro.
Enchi as palmas das mãos, unidas em forma de concha, e joguei bruscamente no rosto.
Ponteio, de Edu Lobo tocava quando me sentei à mesa novamente.
Dois Taxis.
Aparentemente o ‘’rapaz sem nome’’, morava próximo a minha casa.
Despedida.
Gritos, aperto de mãos fortes, e abraços mais fortes ainda em Renato. Beijo no rosto de meu melhor amigo. ‘’Até breve’’.
Corpo franzino. Braços curtos. Beijo leve. Na verdade deixei meus lábios caírem e tocarem o mais breve o possível a maçã direita do rosto de Ramona – ainda era possível sentir seu hálito leve e adocicado pelo vinho, ‘’até breve’’, sussurrou-me ao pé de minha orelha.
 Sempre que um amigo perguntava-me sobre Ramona, a observação ‘’ela é linda’’, acompanhava a pergunta quase que de modo instantâneo. Assim como minha resposta, ’’ Claro que é! Renato sempre teve bom gosto para mulheres’’. Eu não sei por que respondia aquilo com tamanha prontidão, Ramona era, até onde eu me lembro, foi à primeira namorada de Renato. Nunca antes o vi com outras mulheres, fossem namoradas, amigas ou qualquer uma dessas denominações que se tão a um relacionamento hoje em dia.
Hoje as conjecturas da pergunta não mudaram. Mas juntamente com minha resposta, uma avalanche de imagens me vêem a mente: os lábios, o cabelo, o olhar de Ramona. ‘’Sim, sim. É linda... ’’, respondo de modo ainda mais esquio do que antes.




A primeira vez que vi Ramona nua, sentir vontade de sair correndo, de me matar.
’Frouxo’’, disse Ramona.
‘’Seremos amigos eternos’’, a voz de Renato ecoava em meus ouvidos. Frase que ele disse com o nariz sangrando e as mãos esfoladas. Conheci Renato em uma briga no campinho de futebol da rua abaixo a minha casa, tínhamos 14, 15 anos no maximo. Eu e ele jogamos no mesmo time pela primeira vez naquele dia, e logo ganhei sua admiração quando um rapaz do time rival lhe fez uma falta muito mais dura do que o necessário. Foi assim que Renato esfolou o braço, uma queda. E eu lhe tomei as dores, indo logo aos socos e chutes para defender ‘’meu amigo desconhecido’’. Uma briga generalizada logo se formou. Time contra time. Foi assim que Renato quebrou o nariz, soco.
‘’Obrigado cara. Foi a minha primeira briga, sempre fui meio frouxo com essas coisas’’, me confessou Renato algum tempo depois, quando nossa amizade já ia a passos largos.
Agora eu estava ali, com a mulher que ‘’torrnara homem’’ meu melhor amigo, nua perante mim.
‘’Frouxo’’, ‘’Oi?’’, ‘’Você é frouxo’’, repetiu. 
E assim como sua resposta no restaurante, essa sua forma de quebrar o silencio, que apesar da nudez de nossos corpos, novamente parecia impenetrável entre eu e ela, foi mais um tapa em minha cara.
Uma ereção. Uma ereção foi o que me ocorreu. Uma ereção como eu não tinha há anos. Meu pau não ficou duro pela nudez de Ramona exposta a mim, ou pela possível erotização da situação toda. Afinal, o que uma traição tem de pecaminosa, tem também de excitante. Meu pau ficou duro pela sua frase ‘’ larga de ser frouxo’’. Pronunciada de modo comum, como quem pede um copo de água ou pergunta um endereço a um desconhecido. Ramona nua, deitada na cama, com as pernas semi-abertas e os braços jogados por de trás da cabeça, me olhando de baixo para cima, dizendo ‘’larga de ser frouxo’’ com um sorrisinho sínico que lhe cobria metade da boca foi à coisa mais excitante que vi na vida. Lembrei-me de Renato novamente, dizendo, ‘’a mulher que me fez homem’’.
Ramona não parecia se incomodar por estar traindo Renato, não parecia, de modo algum, se incomodar por estar traindo Renato comigo. Seu melhor amigo. Aliás, eu também não parecia me incomodar. Agora neste quarto somente eu e ela trancados durante duas horas. Eu e ela sozinhos. Nus. Sem nós conhecemos. Tendo uma traição como o único elo entre nós. Tínhamos na nudez e no conforto de uma perversão a liberdade para sermos os monstros que sempre soubemos ser. Ramona e eu pertencíamos ao mesmo grupo de pessoas, as que traem.
Transar com Ramona era como participar de um filme pornô interativo. Nada era proibido, tudo era na verdade, exigido, implorado por ela. A vergonha habitual que consome os casais quando se despem e se tocam pela primeira vez, não acontece quando se transar com Ramona. A primeira vez que transamos teve uma carga de falsa intimidade como nunca pensei ser possível. Um exemplo disso foi a sua exigência de fazer tudo às claras, ‘’Eu preciso, necessito, vê você me tocando’’, falava em tom forte, seco, como o tom de quem dá uma ordem a um subordinado. Era como uma dança liberal, libertina. Uma dança aonde quem conduz o compasso da situação não é o macho e sim a fêmea. Ramona conduzia minhas mãos, guiava minha boca, segurava e soltava minha língua, meu membro, quando assim desejasse. E se fingia deixar guiar por mim quando bem entendia. Era tudo muito bem mascarado, dissimulado. Tudo muito falso e verdadeiro ao mesmo tempo, era como comer uma daquelas comidas de fastfood, instantânea e simulacra, mas que sacia a fome da mesma forma. Ramona se fingia submissa para conduzir meu corpo. Transar com ela foi como participar de um ballet muito bem ensaiado, onde até mesmo eu, que não sabia nem sequer o ritmo da valsa, conseguir me sair extremamente bem, graças a sua condução de maestro.
Ramona era a perfeita tradução, a perfeita ‘’carnificação’’ da palavra ‘’inédito’’. O que ela falava, o que ela não falava, o que ela deixava ou não de fazer na cama. Tudo com Ramona era como uma primeira vez, marcante e inesquecível. 
O teto do motel era branco. Branco com pequenas ranhuras nas bordas. Acho que o fitei durante uns dez minutos após Ramona abandonar meu corpo. Deitado com o lençol me cobrindo as pernas e parte da virilha. Ela foi a primeira a sair da cama, debruçou-se sobre a janela, ainda nua e acendeu um cigarro. ’’ Você fuma?’’, perguntou. Demorei alguns segundos para responder, encantado com a cena toda. Ramona de costa, em pé, segurando o cigarro contra a luz cinzenta que vinha pela janela e invadia primeiro seu corpo, depois o quarto por inteiro- quarto que agora já se encontrava na penumbra rosada, clássica dos fins de tarde em Goiânia, durante os primeiros meses do ano. ‘’Fumo’’, respondi.
‘’Isso não é estranho para você?’, questionei com o cigarro já acesso, lhe fazendo companhia na janela, ’’Isso o que?’’, respondeu. ’’ Isso. Traição... ’’, Não, não é... ’’ respondeu com a mesma voz plácida e estimulante que as mulheres geralmente fazem somente quando estão na cama. ‘’Hmmm... Você já vez isso antes?’’, Já’’, continuou, ’’ E quer saber? Eu vou fazer isso de novo. Pode ser com você ou não, mas vou fazer de novo. ’’. Quis implorar a Ramona que fosse comigo, me calei.


‘’Sinto que poderia dividi tudo com você’’, me disse Renato, entregando o cigarro que há segundos atrás estava em sua boca, quando juntos começamos a fumar. Era cheio dessas frases que me assustavam, mas logo se tornavam comuns, cotidianas. Eu e ele logo passamos a dividi tudo mesmo. A garrafinha de água, o cigarro, o isqueiro, vira e mexe Renato usava alguma camisa minha. Eu usava alguma dele. Quem nos via por fora, certamente apostava que nos compúnhamos um casal. Durante um tempo, no começo, quando ouvia as frases dúbias de Renato pelas primeiras vezes, até mesmo eu cheguei a cogitar a possibilidade de ele ser sim gay. Mas meses depois Renato me apareceu com Ramona, ‘’Moça incrível, linda!’’, contou empolgado. Seu relacionamento com ela não alterou em nada a nossa amizade, pelo o contrario, a fortaleceu. Se antes eu ficava com o pé atrás com a sexualidade de meu amigo e  sobre seus ‘’interesses’’ em nossa amizade até então ‘’sincera’’, agora esse já não era mais o caso. Renato tinha uma namorada, e isso fortaleceu mais nossa amizade, fortaleceu nossa intimidade. Passamos a dividir ainda mais nossos objetos, nossas afeições. Já era comum ficamos sempre juntos, e juntos na casa dele ou na minha nos deitamos na mesma cama para assistir algum filme de Allen ou Fellini e ali, igualmente juntos, adormecíamos. Assim, não era nada incomum Renato acordar primeiro que eu e ir a cozinha passar um café. Sair, comprar pães e cigarros e gentilmente esperar meu despertar. ’’ Cigarros e café meu velho’’, ouvia Renato dizer quando, ainda meio zonzo por causa da habitual forma brusca com a qual me levanto da cama, me dirigia a seu encontro na cozinha.
Beijos no rosto, segredos, toques e caricias. Era normal eu dormi no colo de Renato enquanto esse mexia em meus cabelos ou vice-versa. Tudo isso aumentou freneticamente ou até mesmo começou com a chegada de Ramona a vida de Renato.
Com a chegada de Ramona as nossas vidas. Não a conhecia. Fora a ocasião do aniversario de Renato, a havia visto apenas uma única vez, em uma noite em que saímos juntos eu, ela e Renato, e eu embriagado, não me recordo como ou porque voltei para casa. Lembro-me – lembro-me muito bem, aliás- que essa foi à primeira vez em anos, que sair com Renato e não voltei para casa com ele, ele que era meu vizinho e meu companheiro indispensável.
Pensei tudo isso já em casa. Fumando. ‘’Sinto que podemos dividir tudo’’, a voz de Renato ecoava em minha cabeça. Queria pegar o telefone e discar o numero que sabia de cor a mais de quinze anos, dizer: ‘’Agora dividimos a mesma mulher, meu velho. ’’

Eu e Ramona passamos a nos encontrar com certa regularidade. Ao menos uma vez por semana nos encontrávamos no mesmo motel em que transamos pela primeira vez, no mesmo motel em que pela primeira vez, juntos, traímos Renato. Sempre chegava mais cedo do que eu, sempre me esperava já nua na cama. Com uma calcinha sempre diferente ou sem peça intima alguma. Ora tão desperta como quem acabara de cheirar sozinha três ou quatro papelotes de cocaína durante horas, ora dormindo com tamanho despojamento como quem dorme em sua própria cama. Nunca a encontrava ‘’compondo a mesma cena’’, não sei ao certo, mas às vezes tinha a sensação de que, até mesmo mais importante do o ato sexual em si, mais importante do que ter ou dar prazer, o que interessa mesmo a Ramona era a manutenção estética da cena que se passaria naquele quarto de motel velho no centro de Goiânia. Me surpreender era o que de fato estava em jogo. Um dia a encontrei dormindo pela segunda vez, e pela primeira vez a via, a enxergava de modo igual, de modo já visto antes, repetitivo. Ainda mais comum e liberta do que a primeira vez que a vi dormindo. Ramona dormia com os cabelos amarrados para trás, usando calça jeans, camisa cinza e meias brancas. Um sapato se encontrava na entrada do quarto, o outro próximo a cama. Não despertou com a minha chegada. Sentei no chão, acendi um cigarro e durante 20 ou 30 minutos a observei dormi. Naquele dia, de modo também surreal, tive a sensação de pela primeira vez vê Ramona fazendo algo de verdade. Sem fingir. Os seus cílios tocavam uns aos outros de modo sutil, deixando uma pequena brecha pela qual era possível enxerga a parte branca de seus olhos. Olhos que se moviam em frenesi. Ramona sonhava. Seria comigo? Com Renato? Ou seria ainda com um terceiro? Quem abrigava os sonhos de Ramona? O corpo, ao menos durante aqueles dias, era meu. Mas e seus sonhos? Pertenciam a mim também? O corpo pequeno, cabelos curtos, lábios finos. Frágil, Ramona é frágil. Pude até mesmo imaginar seu corpo dentro de uma daquelas caixas comercias, com um aviso escrito em vermelho, ’’ este lado para baixo. Cuidado, frágil’’. Ramona dormindo estava entregue a mim, como nunca estivera antes.
Despertou.
Abriu os olhos e me viu a sua frente, sentado no chão em posição de quem pratica yoga. Pernas cruzadas sobre elas mesmas. Cigarro a mão. Pareceu se assustar.
Pareceu sentir medo por ser surpreendida na cama, dormindo, ao invés de me surpreender naquele dia. Pupilas dilatadas. Levantou de sobre salto, não me dirigiu palavra. Um tênis. Outro. Saiu. O quarto cheirava a cigarro e a naftalina.  Naquele dia não transamos.
A parti daquele dia
não transamos mais.


Ramona e eu nos comunicávamos por e-mail. E eu não sabia seu telefone, seu endereço, não sabia nada.
Ramona foi como um espectro que passou por minha vida. Uma fantasmagoria. Uma mulher morta vestida de branco, ou melhor: uma mulher morta, nua, que me assombrou na estrada à noite. E somente eu sei o medo que sentir, somente eu sei que era real. E não posso contar isso a ninguém. Ninguém acreditaria em mim. Ninguém além de Renato, e Renato é o único que não deve ouvir minha historia sobre fantasmas.
Estava sozinho no mundo. Não havia absolutamente ninguém com quem pudesse conversar sobre Ramona, sobre a traição que debrucei contra o meu melhor amigo. E principalmente sobre o medo que sentia de nunca mais tocar o corpo de Ramona, de que Ramona nunca mais me usa-se para o seu bel-prazer. Era apenas eu, sozinho. Eu e Ramona nua desfilando em minha mente. Tão surpreendente e inquietante quanto se estive aqui, ao meu lado, viva.
Eu fumava, fumava muito.
Sozinho. Férias.
Não tinha animo, na verdade não tinha coragem para ir à casa de Renato. Apesar do ímpeto que de hora em hora me transbordava de vontade de ir até ele, de lhe contar tudo, lhe pedir perdão. E implorar que me desse o numero do telefone de Ramona. Implorar para que me mostrasse a casa onde ela morava. Que me entregasse ele, com suas próprias mãos, uma foto dela. Qualquer coisa, qualquer coisa... Um pedacinho de Ramona para mim que tremia de abstinência.
‘’Vou fazer isso de novo. Pode ser com você ou não, mas vou fazer de novo. ’’
A frase e a imagem de Ramona nua, fumando debruçada na janela, me atingiram a memória quando eu estava na cozinha bebendo água direto do gargalo da garrafa de vidro. Garrafa que atirei contra a parede de imediato, ‘’Pode ser com você ou não, mas vou fazer de novo. ’’
Cai no chão em pranto.
Imaginei, ou melhor, as imagens me invadiam a mente sem a minha permissão: Ramona nua, transando com outro homem. Conduzindo as mãos e o membro de outro. Brincando com a língua de outro em sua boca. Dançando, nua na cama, com outro.
Mas quem?
Lembrei-me do rapaz loiro, de olhos verdes e pele branca, quase que transparente que acompanhava eu e Ramona no aniversario de Renato. Não sabia seu nome, não ouvi sua voz uma única vez sequer... Na cozinha, arrastei-me até a terceira gaveta do armário. Peguei uma faca. E ainda chorando, agora com a faca nas mãos, desferir golpes no ar. Imaginei-me matando o loirinho de pele clara. Seu sangue vermelho-rosa se esparramando pelo chão do restaurante onde comíamos. E Ramona vendo tudo de longe, com a mesma cara de quem já viu tudo no mundo, me olhando sangrar o rapaz, espantada. Isso ela ainda não tinha visto, ainda não tinha visto eu matando o loirinho a facadas. Sorrir. No chão, faca na mão, o gosto das lagrimas salgadas me vinha à boca, agora aberta pelo meu sorriso de satisfação. Uma salivação espessa me atrapalhava a respirar normalmente.
A Campainha toca.
Levanto-me, rapidamente guardo a faca e lavo o rosto.
Chovia. Chovia torrencialmente. Chovia como se costuma chover nos dias de Junho em Goiânia.
A campainha soou novamente.
Abri.
Renato.
Entrou.
Abraçou-me forte. ‘’Ramona foi embora. ’’, falou. ‘’Como assim? Foi embora?’’, respondi, me controlando para não cair no choro como uma criança. ‘’Assim, foi embora’’. ‘’E você não fez nada?’’, Não’’. Respondeu com a calma de um monge budista.
‘’Não?”’, retorqui; Renato não respondeu. Se dirigiu para o meu quarto, deixando no chão um rastro molhado. Já havia tirado os tênis, no caminho foi se despindo. A camisa foi à primeira peça de roupa que ele desgrudou de sua pele encharcada, deixando a mostra suas costas negras. Em seguida as calças. Sumiu em meu quarto. Fui à cozinha. Água no forno. Café.
Renato voltou em seguida. Ainda sem camisa, descalço, usando uma bermuda minha. Toalha sobre os ombros.
Tatuagem em forma de águia no peito esquerdo.
Eu encostando-me a pia da cozinha, observando a água ferve.
Puxou uma cadeira, começou a falar, ‘’É isso cara. Olha, você nem ao menos conheceu Ramona direito, eu namorei durante três anos com ela, e você, meu melhor amigo, nem sequer a conheceu direito. Sei que você sabe que gosto muito dela, mas não se preocupe comigo’’, disse, enxugando os cabelos encaracolados.
Por um instante a vontade de chorar passou. Eu não estava mais sozinho no mundo com Ramona dando voltas e voltas nua em minha cabeça. Meu melhor amigo estava comigo.
‘’Sabe’’, voltou a falar, ‘’Eu sinto falta de tomar uma cerveja e voltar bêbado para casa com meu melhor amigo. Foram três anos cara, três anos de namoro. Três anos que deixei a vida passar e me dediquei a Ramona. Agora eu voltei. Agora nós voltamos’’, disse sorrindo já vestindo a camisa que também era minha. ‘’Nós voltamos?’’, questionei. ‘’Sim, nós, eu e você. Juntos, como antes. ’’
Café pronto.
Servi-lhe em uma caneca de cor vinho, presente dele a mim. Ofereci cigarro. ‘’Voltou a fumar?”“, disse enquanto com uma mão segurava a caneca e com a outra fazia que não aceitava. ‘’Voltei’’, respondi acendendo um cigarro na chama ainda flamejante do fogão. Renato levantou-se de um salto da cadeira, tomou o cigarro de meus lábios, e deu uma tragada forte, dizendo, ‘’ ‘’Que se dane! Nós podemos dividir qualquer coisa, até mesmo um câncer de pulmão. ’’ Caímos na risada. Deixei meu cigarro com ele e acendi outro para mim. Renato me abraçou forte, ‘’Eu voltei amigão. ’’, sussurrou, ‘’Nós voltamos’’, respondi envolto em seus braços.

Naquela noite fumamos uma carteira inteira.
Conversamos como nunca. 
Conversamos como dois amigos que não se vêem há três anos.
Chovia torrencialmente em Goiânia.
Era Junho.
Naquela noite assistimos Desconstruindo Harry, de Allen.
Naquela noite, após três anos, eu e Renato
Adormecemos na mesma cama novamente. 


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