domingo, 15 de fevereiro de 2015

Lourenço





Diga-me que me odeia. Que gostaria de me machucar... Que se apaixonou por outra mulher... Mas não me diga que, estar me esquecendo. (Alan Pauls)

Presume-se que a mulher deve esperar, imóvel, até ser cortejada. Mais ou menos como a aranha espera a mosca. (George Shaw)


‘’Namore um escritor e viva para sempre’’. Invariavelmente repetia esta frase, a qual eu de modo igualmente mecânico, respondia: ’primeiro: é uma frase idiota. Certamente retirada de algum livro de autoajuda, escrito por um gordinho com mais de 40 anos, brasileiro sem duvidas, e que não transa  desde à adolescência. Segundo: eu sempre mato minhas personagens no final. ’’

Raquel ria. 
Ria freneticamente. 
Era uma encenação em três atos: A afirmação ridícula dela. Minha resposta dura, porém igualmente ridícula. E a risada de deboche fechando a cena. 
Um silogismo perfeito.
Raquel era uma daquelas mulheres que amam desmedidamente. Uma daquelas mulheres que amam muito mais a conquista, amam muito mais a representação do que amam de fato, um homem. E eu, sou isso. O trofeuzinho de Raquel.
Nunca me amou. Nunca me odiou. Sou irrelevante. O que interessava, o que importa de verdade é que ela conquistou, não um homem, um amante, mas um escritor. Conquistou o rapaz que escreve os gracejos falsos de uma vida bucólica, agitada e irresponsável. O rapaz que nos livros que escreve, não ama ninguém, que despreza o amor que vem de qualquer uma. Um monstrinho criado por mim e que as mulheres parecem gostar. Raquel conquistou através de mim, a inveja de todas.
Sou duplo. 
Quem escreve sempre é. E será eternamente, duplo. Existe um que escreve e outro que as pessoas creem que vive/viveu o que narra. Persona e personagem. Ser escritor é tecer poesia com mentiras. Se as pessoas leem e acreditam naquilo que você escreveu, então você é bom.
Raquel é critica literária. A critica literária menos critica que eu já conheci. A prova cabal disso, é que ela casou-se comigo.
Foi rápido. 
Surpreendente. 
Duas horas após conhecer Raquel, ela estava em minha cama. 
Alguns mês depois, minha esposa.
Raquel foi tão inesperada, assustadora e surreal quanto um relâmpago em uma tarde ensolarada.
Procrastinar em demasia o amor é o que me faz escrever. A masturbação lírica que crio e nutro quando conheço uma mulher, ajuda a vender livros. Escrevo tudo aquilo que não vivo. Escrevo ao invés de viver. Raquel foi susto. 
Não deixou-me terce-la em tinta. 
Foi rápida.
Ela mesma se fez mulher em minha cama. Não esperou meu convite. 
‘’A teia da mulher aranha é a pior coisa que já li na vida’’. Raquel soltou essa frase em nossa primeira noite. 
‘’A teia da mulher aranha é a pior coisa que já li na vida.’’ 
Essa frase nunca me saiu da cabeça.
A frase de Raquel soou tão irônica. Tão desprovida de bom senso. Ela ali, nua, toda desprotegida e frágil. Dizendo aquilo, me fez querer rir. 
Raquel deixou-se pegar por mim. Me fiz de presa onde era caçador.
Meus livros foram a minha teia. Raquel a mosca, eu a aranha. 
Há três anos era isso que pensava.
Hoje não. 
Hoje vejo que estava errado.
Eu fui mosca. 
Raquel aranha.
Seu corpo, teia.
Faz três anos que eu e Raquel somos casados.
Há três anos eu escrevi meu ultimo livro.
Faz três anos que escuto ‘’Namore um escritor e viva para sempre’’.
Faz três anos que sou cobrado. 
‘’Quando sairá seu próximo livro?’’
Plágio.
Hoje irei pecar. 
Antes de Raquel, quando eu vivia os momentos precoces da criação de um livro, trancava-me no quarto para não ter o menor contato com o mundo externo. Para não ser influenciado em minha escrita. Queria ser o mais original possível. Mas após cair nas teias de Raquel, fiquei imóvel. Não consigo pensar em mais nada. Não consigo criar. Só me resta, mesmo que com toda a vergonha do mundo, copiar.
Roubar a ideia de outro mentiroso.
Junho. 
12 de Junho. 
Nosso primeiro aniversario de namoro.  Lhe presentei com uma edição capa dura e em francês de O Pequeno Príncipe. Raquel riu, fingindo gostar. Por sua vez, recebido de suas mãos, segunda ela mesma, a obra ‘’magma de um dos mais brilhantes autores nacionais’’.
O Natimorto de Lourenço Mutarrelli. 
Peguei o livro com temor e vergonha. Temor porque a mulher que diz ser a ‘’teia da mulher aranha o pior livro que já leu’’ indicar algo como ‘’o mais brilhante autor’’ e ainda oferecer sua obra ‘’magma’’, é no mínimo estranho. Vergonha, por eu não ter a menor ideia de quem era aquele tal de Lourenço.
''Um dos mais brilhantes autores nacionais''.
O Natimorto.
Capa rubra. 
Brochura. 
Cartas de tarô desenhadas. 
Lourenço Mutarelli, escrito em tom vermelho, no canto superior esquerdo. Cheio de desenhos bizarros no final de cada capitulo.
O verso:
Ela é uma cantora de voz tão pura que se torna inaudível para os ouvidos humanos. Ele é o agente
que vai buscá-la na rodoviária, sem
saber que aquela voz está prestes a mudar sua vida. Mas a fotografia estampada no maço de cigarros
que ele compra naquele dia talvez seja o primeiro sinal: um bebê entubado, à morte. O Natimorto.
Em pouco tempo, ele a seduz com a estranha
Mania de ler a sorte nos maços de cigarros, como
Se fossem cartas de tarô. E ela, sem perceber,
Envolve-se com um homem em crise, corroído por traumas, problemas conjugais, e tomado pela idéia fixa da pureza.
Escrito assim, com frases quebradas. Aquilo me chocou. Eu não sabia que era permitido escrever daquela forma. Li o livro em um dia. Desde então aquele final nunca me saiu do pensamento. Eu não sabia que era permitido escrever aquelas coisas.
Aquele final...
Como eu disse,
hoje eu cometerei plagio.
Tranquei-me no quarto ontem.
‘’Você vai escrever! Você vai escrever!’’, dizia Raquel enquanto abraçava-me e me beijava como nunca a sentir fazer antes. ’’ Sim, hoje vou escrever a coisa mais real que já escrevi’’, respondi com um meio sorriso no rosto.
Garrafas de refrigerante e maços de cigarros com filtros vermelhos. 
Nunca fumei, porém, hoje pareceu-me um ótimo dia para começar.
Um quartinho pequeno nos fundos da nossa casa. Úmido e empoeirado.
Tranquei-me lá dentro por um dia e meio.
Fazendo nada.
Nada além de ler O Natimorto, beber refrigerante e fumar. Assim que terminava o livro, voltava imediatamente ao começo. Assim que meu copo esvaziava-se, o enchia novamente. Com o tempo passei a beber diretamente da garrafa. A acender um cigarro na bituca do outro. Não sei dizer se dormi ou não.
Levou um dia e meio para Raquel interromper-me. ’’Me desculpe, eu sei que esse é o seu método. Mas acontece que estou preocupada. Você não saiu daqui para comer, ou tomar banho. Alias, nem mesmo vi você indo ao banheiro’’. Apontei-lhe as garrafas pets de dois litros, jogadas no canto do quarto, cheias de urina. Ela olhou fixamente por uns cinco segundos, parecendo não acreditar. ’’ Isso é bizarro!’’, finalmente falou. ’’Você não viu aonde faço o numero dois ainda’’, respondi serio. Raquel gargalhou, como se eu houvesse lhe contado alguma piada. ‘’Então, sobre o que você estar escrevendo? Perguntou-me, olhando em volta do quarto, como alguém que procura uma pista em uma cena de crime. ’’Não posso lhe contar ainda... Mas logo, logo você verá... ’’ respondi. ‘’Olha você não precisa fumar, não precisa fingir ser quem você não é. As pessoas gostam do que você escreve, do jeito que você escreve. Não se mate por isso. ’’ Aconselhou-me. ’’ Não me matarei’’. Raquel ia abrindo a porta, quando lhe interrompi, 
‘’Ta sentido esse cheiro?’’. ‘’É cheiro de merda.
É o meu cheiro. 
Agora eu sou mais eu!’’.  
Raquel saiu em silencio.
Acendi um cigarro. Sentei-me no chão. Abri o livro.
Dois dias e meio.
‘’Alo?”‘, respondeu.
‘’Raquel, me traga refrigerante e dois maços de cigarro, por favor’’.
‘’Escuta, não acha melhor você mesmo vim buscar? Respirar um pouco de ar puro. Tomar um banho. ’’
‘’Não Raquel. Eu saio em breve. Hoje mesmo eu termino minha obra’’
‘’De verdade!? Que maravilha!’’.
   Desligou.
   Meia hora depois a porta abre. ’’Nossa isso aqui ta fedendo de verdade’’, observou.
‘’Não’’, disse. ’’Não o que?’’ respondeu. ’’ Não, não é isso aqui que ta fedendo. Sou eu. O cheiro é      meu. Vem de mim. Logo quem fede sou eu. Eu sou organico o quarto não. O quarto  não fede.’’ Abrir o refrigerante. Acendi um cigarro.

‘’Nossa você não devia fazer isso!’’
‘’Por quê?’’
‘’Faz mal para os dentes!’’
‘’E mesmo sabendo que fumar é prejudicial à saudade, que causa morte prematura em fetos, câncer    de boca e problemas de gengiva, acendeu outro cigarro. ’’ Pensei. 
‘’Você não sente fome aqui dentro?’’
‘’Fome? Sim, muita fome’’.
‘’Você quer que eu traga algo para você?’’
‘’Trazer algo? Sim, quero sim. Traga algo que eu possa comer com garfo e faca’’.
   Raquel sorriu, ’’Claro’’.
   Saindo.
 ‘’Raquel!’’, chamei.
 ‘’Oi amor?”
 ‘’Quantos quilos você pesa?’’
 ‘’Como assim?’’
 ‘’Quantos quilos você pesa?’’
 ‘’Cinquenta e sete, eu acho’’. Respondeu com a cara de duvida.
    Cinquenta e sete quilinhos. Aquilo era perfeito.
 ‘’Por quê?’’
 ‘’Nada’’.
    Sorriu abrindo a porta. ’’Não se esqueça do garfo e da faca’’.

    Acendi outro cigarro.
    Sentei novamente no chão e abri O Natimorto em seu desfecho.
    Diz assim:

  Guardo forças.
  Preciso de muita energia
  Para concretizar o meu plano.
  Preciso jejuar.

  Estar tudo planejado.
  Cuidadosamente planejado.
  Ela pesa em torno de sessenta quilos no máximo.
  Se eu conseguir comer em torno de cinco quilos de carne por dia,
  Seis vezes cinco, trinta,
  Em menos de dez dias
  Não sobrará nada.

  Será que eu como cinco quilos num dia?
  Será preciso comer,
  Senão a carne estraga
  E vai me dar dor de barriga.
  Vou fazer igual à menina
  Vou comer

  Mesmo se não estiver com vontade 
  Vai ver que é por isso que a menina tem aquela expressão (referindo-se a um quadro de Magritte ''Menina Comendo Pássaro'').
  Vai ver que ela já comeu muitos outros
  Antes de ser retratada comendo aquele.
  Tenho que descontar o peso
  dos ossos.

  Quanto pesa um fêmur?
  Acho que não chega a um quilo.
  Não, um fêmur deve pesar uns quinhentos gramas.
  E um crânio?

  As falanges são levinhas.
  Falange, falanginha, falangeta.
  Falange, falanginha, falangeta.
  Falange, falanginha, falangeta.
  Falange, falanginha, falangeta.
  Carpo, metacarpo.

  Fechei o livro.
  Fiquei repetindo baixinho, sussurrando:

  Falange, falanginha, falangeta.
  Falange, falanginha, falangeta.
  Falange, Falange, falanginha, falangeta.
  Falanginha, falangeta.

  A porta se abriu. ’’ Aqui estar amor’’, disse Raquel com um prato nas mãos.
  A faca e o garfo na outra, enrolados em pano.
‘’Obrigado’’.
  Acendi um cigarro, sentei no chão.
  E comecei a comer.
  Raquel sentou ao meu lado. Encostando sua cabeça em meu ombro.
  Silêncio.
‘’Quantos quilos você disse que pesava mesmo Raquel?”’
‘’Cinquenta e sete. Por quê? Que pergunta mais estranha!’’
‘’Por nada, por nada. ’’

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